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O que é o fim?



2012-10-25

Esse livro é um soco. Nada fica igual depois para o leitor, como não ficou para a autora, a jornalista Susana Moreira Marques. Ela andou por aldeias de Trás-os-Montes a acompanhar um projecto de prestação de cuidados paliativos ao domicílio e escreveu sobre isso. Notas e retratos de quem está sentenciado de morte, histórias em discurso directo e que agora surgem em livro. Um livro onde o grande exercício é o da contenção. Das palavras, das emoção, de não ir mais longe do que se deve ou será comprometer tudo. O trabalho e as vidas de quem teve a generosidade de abrir a porta na hora mais íntima. Há coisas sobre as quais não se pode escrever como sempre se escreveu. Algo muda. Primeiro os olhos, depois o coração -- ou os nervos ou aquilo a que os antigos chamavam alma -- e finalmente, as mãos.

É uma precisão escrever isto, porque que quem escreve foi tocado pelo drama, pela paisagem, pela dor dos outros. Cada vez que regressava a Santulhão, queria perguntar ao Sr. João se tinha medo de morrer. Queria perguntar-lhe como era ter 80 anos, como era chegar ao fim da vida: se tinha remorsos, se tinha valido a pena, o que é que tinha valido a pena? Mas acabava sempre a fazer mais perguntas sobre Angola, como é que tinham ido daqui de Santulhão, concelho de Vimioso, Trás-os-Montes, para o Hoque, Lubango, província de Huíla, Angola; quando e porquê? A pergunta é feita para justificar as perguntas sobre a vida mais do que sobre a morte. Que sentido faz falar da morte aos 80 anos sem falar de tudo o que se viveu?

Agora e Na Hora da Nossa Morte não é um livro intrusivo. Não é voyeur. Traz, de uma maneira pungente, a voz de quem raramente pode falar. E não se fica pela morte. Há foguetes, festa nas aldeias e um olhar sem a arrogância dos saudáveis que acompanha, por exemplo, os gestos de Paula, a passar a ferro as madeixas de cabelo de Ana, a filha de 12 anos, em vésperas do baile. Onde está Ivan Ilicth? Onde está a agonia, como a escreveu Lev Tolstoi? Onde estão os homens olhando para trás, para o momento em que se fizeram homens? Onde está o arrependimento e  perdão? E a satisfação, se a houve, dos dias felizes? São as questões ante o sofrimento maior que Susama Moreira Marques levanta. Procura respostas para algumas, para outras sabe da eterna dúvida. São os outros que lhe vão dando as pistas. Aqueles que raramente se fazem ouvir. Esse livro é um soco de vida.

Texto publicado originalmente na revista Sábado.

trecho

«Quando soube que não sobreviveria à doença e que não poderia continuar a caminhar no vasto campo em frente de sua casa, o caçador que gostava de flores pediu misericórdia, que o matassem depressa, por favor. Morreu numa cama sem dizer últimas palavras de significado e nesse dia nasceu no quintal um cachorro que nunca viria a ser cão de caça; foi então levado para um caixão e velado no centro da sua sala, os pássaros empalhados com as asas abertas olhando?o de cima do armário. Na varanda, com vista para a terra que tinha sido a sua maior alegria e que supunha ir gozar em pleno na velhice, tinha o vaso preferido que deu ainda flor na Primavera após a sua morte.»



  Agora e Na Hora da Nossa Morte

Susana Moreira Marques

Edições Tinta-da-China  



Revista Pessoa
 



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