A algazarra dos meninos ricos em João Pessoa, a solidão reconfortante em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, ou o escândalo da mulher enciumada de Anitápolis, Santa Catarina, são pretextos para Ricardo Soares transformar em literatura suas impressões sobre o que viu, viveu ou imaginou.
Adepto da teoria de que o lugar influencia o que somos, o escritor, jornalista e roteirista toma como ponto de partida lugares que causam estranhamento para focar sua lente nas histórias das gentes e nas gentes das histórias.
Todos os dias, durante um ano, uma nova história do seu Diário do Anonimato poderá ser lida aqui na nossa plataforma digital. Para dar uma perspectiva diferente de leitura, reunimos as histórias de cada mês em um único post.
Quem quiser ler as publicações de setembro clica aqui: histórias de setembro.
Depois de um mês de estreia, o autor dá uma entrevista em que fala sobre o projeto, suas motivações, o processo criativo e o que pensa da literatura. Confira.
revista Pessoa - O que é 365?
Ricardo Soares - Justamente um Diário do Anonimato do Mundo, impressões que cada um de nós temos todos os dias ao observamos cenas diversas e difusas. Quem já não entrou num ônibus, metrô, avião ou observou alguém na multidão tentando adivinhar o pensamento alheio? 365 é isso. Tentativa de apreender as impressões muitas que nos perpassam todos os dias.
É tudo ficção?
É tudo uma mistura de ficção com realidade. Um mix de coisas lidas, vistas, vividas, inventadas e observadas e, não necessariamente acontecidas nos lugares onde as localizo.
Passou por todos os lugares que servem de cenário para as histórias? Em que se baseia a escolha deles?
Grande parte dos lugares escolhidos foram locais onde passei ou vivi durante a vida pessoal ou profissional. A escolha deles se baseia em lugares que de alguma forma me deram a sensação de acolhimento ou estranhamento. Algo que eu precisasse de fato registrar.
O que há em comum entre todos os lugares que servem de cenário para suas histórias?
Como eu disse, o paradoxo entre o conforto e o desconforto, o acolhimento, o estranhamento, o alumbramento. Todos os lugares tem um cheiro especifico, uma energia específica, uma história específica. É uma tentativa - talvez vã - de mostrar a impressão digital que cada lugar desses pode deixar na gente.
Parece que você fala de lugares, mas as histórias são sobre pessoas. O que mais te interessa nas pessoas como instrumento para a criação literária?
Você tem razão. Falo dos lugares mas as histórias são sobre pessoas. As pessoas nos seus lugares. De origem ou não. As vezes elas estão só de passagem. Mas quero mostrar que a reação delas tem a ver com o lugar onde estão. De repente o mesmo personagem que esteja em Mossoró ou Luanda tem impressões completamente distintas inclusive sobre si mesmo. Sou adepto da difusa teoria de que o lugar influencia muito o que somos, para onde vamos, o que queremos.
As histórias ainda não estão acabadas. Durante essa experiência de um mês, você tem mudado muita coisa em relação ao formato original?
As histórias são work in progress... mudei pouco. As vezes mais por alguma desatenção gramatical ou repetição de local. Repeti, distraído, duas histórias passadas em Florianópolis. Aí transformei uma história (a do dia 27 de setembro) que se passava na beira da Lagoa da Conceição (Floripa) para uma história passada na beira da Lagoa dos Patos (Porto Alegre) e tudo ficou ok. Os locais não podem se repetir. Essa é a idéia.
A sua experiência como documentarista tem ajudado na criação das narrativas?
Muito. A experiência de documentarista faz com que a gente feche a lente não apenas nas histórias mas nas gentes das histórias. As tais gentidades das quais nos falava o notável Darcy Ribeiro. Quando a gente observa uma pessoa sempre imagina a sua história de alguma forma. Impressionante como as vezes acertamos e assustador como erramos. Mas é um exercício muito divertido.
Como é essa experiência de escrever em pílulas para uma nova plataforma?
Para usar um clichê de celebridades tem sido uma experiência incrível! Sobretudo porque é um formato novo, num veículo novo, com interação de facebook e twitter. A gente pensa que uma história vai agradar e aí ela frustra e as vezes pensa que uma história vai frustrar e aí ela agrada. Tenho gostado muito.
A literatura, como testemunho escrito sobre a vida, pode ajudar a clarificar nossa relação com o outro, com o mundo?
A literatura ajuda nas nossas relações com o outro na medida em que abre outras portas de percepção mais sutis, menos óbvias. Pode deixar aquela brecha do tipo: pô mas como é que eu não tinha pensado nisso antes?. Ingênuo ou não, apesar das grandes mudanças tecnológicas eu acredito ainda no poder transformador da linguagem, no quanto a literatura pode ajudar a sensibilizar corações e mentes tão duras. Acho que a leitura por exemplo de um Italo Calvino, de um John Fante ou de Fernando Pessoa, só para citar alguns, pode fazer mais bem ao espírito do que hora e meia numa esteira queimando calorias.