O título do último livro de Prisca Agustoni, atraente e sugestivo, promete ao leitor uma poesia de teor narrativo: fatos, episódios, acontecimentos, que podem/devem ocorrer em seguida a essa hora-chave, tomada como ponto de partida, marco decisivo. E gera também, cumulativamente, a expectativa de uma poesia reflexiva, centrada na inexorável passagem do tempo. Se temos uma “hora zero”, temos também a presença firme e decidida de uma consciência atenta, preparada para medir e avaliar, criteriosamente, as horas que hão de transcorrer, em vez de simplesmente observar à distância o seu transcurso.
No entanto, desde o poema de abertura, Hora zero concentra sua atenção não no tempo, mas no espaço físico, na realidade palpável da Casa, isto é, o lugar onde se abriga o sentido genuíno dos acontecimentos, transcorridos ou por transcorrer. As horas em si, bem ou mal medidas, contam menos do que a busca incessante desse sentido, que sempre escapaO que foi, o que é e o que será pulsam com intensidade, o tempo todo, nos mistérios que a Casa esconde. Nessa casa de “quartos brancos, grandes, / atravessados pelo vento. / A sala, imensa, com muito céu dentro”; nessa casa que “tem ares de casa dos milagres [...] o tempo era o do meio / sem começo nem fim / tempo oco tempo zero / saudoso de si”.
Relatar acontecimentos, como promete o título, a fim de proustianamente recuperá-los pela memória? Liberar a fantasia e tentar antecipar o que está por vir? Inútil, nem vale a pena começar. O passado resgatado pela memória nunca será o mesmo. E o futuro antecipado é só o que gostaríamos que fosse, mas sabemos que nunca será. Mais do que a consciência atenta, anunciada no título, o que importa é a sensibilidade tensa e aguçada, arco estendido ao limite, pronto a disparar a flecha. Ou a se recolher, para voltar a ser retesado e, assim, continuar sonhando com o alvo impossível, o desejado.
É desse modo que a Casa deve ir sendo devassada, em todos os seus desvãos, quarto por quarto, sala por sala, lembrança por lembrança, anseio por anseio. É desse modo que “a poesia, aos poucos, brotará”...
é só contar os meses
e as semanas
no calendário
é só conter dentro
na moringa do corpo
no escuro do porão
úmidas e invisíveis
as raízes de objetos
e palavras até o ovo virar flor
e o verde desabrochar em verso.
Mário de Andrade certamente faria a Prisca Agustoni a mesma confidência que fez, um dia, a propósito da casa em que viveu a maior parte da sua vida, na hoje famosa rua Lopes Chaves, em São Paulo. E o leitor, instigado pelo título, imantado pelo alto e denso lirismo de Hora zero, não hesitaria em adotar como lema, capaz de ampará-lo na travessia, a terna confidência do poeta de Remate de males:
A minha casa me defende, que sou, por mim, muito desprovido de
defesas. E sobretudo a minha casa me moraliza, no mais vasto sentido desta palavra. (Carta a Henriqueta Lisboa, São Paulo, 24 fev. 1941)
Será essa, talvez (a minha casa me defende, a minha casa me moraliza), a forma mais segura de assimilar a tocante beleza dos versos que falam dos retratos dos antepassados, “na cômoda / reféns da moldura”:
eles irão nos sobreviver
sem dúvida estarão lá
impassíveis
[...]
quando seremos
quem sabe, com eles,
apenas rostos na cômoda
mudos retratos em preto e branco
na engrenagem das horas;
ou destes que falam dos “quartos trancados / onde guardamos o que não cabia / em nós”:
a desordem assim ajeitada,
esquecemo-nos dela
por anos,
até que um dia ela reaparece
e do nada, em silêncio,
a casa começa a ruir
de dentro de nós
para o mundo;
ou ainda destes outros, que falam da “luz da tarde”, que não foi possível guardar “na bagagem da mudança”. A tudo o mais poderemos encontrar ou substituir
mas a luz do fim de tarde
dessa tarde enquanto escrevo
e de novo me despeço
de mim
não tem como encontrar
nem o que aqui se viveu e migrou
muito antes de nós.
São só uns poucos exemplos, mas suficientes para que o leitor se dê conta da altivez verdadeiramente apolínea com que a poeta, com sua escrita clara e iluminada, enfrenta a inexorabilidade das horas que passam, anúncio ao mesmo tempo de morte e ressurreição, a reivindicar “para a poesia o lugar central das experiências inauguradoras de sentido” – como lemos na apresentação assinada por Edimilson de Almeida Pereira.
Hora Zero - Prisca Agustoni. São Paulo, Patuá, 2016, 120 págs.
Apresentação: Edimilson de Almeida Pereira
Prefácio: Iacyr Anderson Freitas