Primeiramente...
Não sei o que diriam aqueles que leram muitas vezes e por anos a fio os
escritos do desenhista, pintor, arquiteto, cenógrafo, engenheiro etc.
Flávio de Carvalho (1899-1973), mas, para mim, leitora recente, a
sensação é de contínua primeira experiência, do que há de inaugural na
descoberta de que é preciso ir além, só que, no caso desse autor, o tal
além está depositado num quando soterrado em camadas móveis e plásticas
terreno arqueológico movimentado pela percepção, não necessariamente
visual, mais tátil, onde por vezes pede-se fechar os olhos (como no
sonho de Freud na noite seguinte ao sepultamento de seu pai, é preciso
fechar os olhos do pai morto para que um outro se abra vivo).
Quando
digo autor, é preciso deixar claro que, em Flávio de Carvalho,
especialista no inacabado e nos restos todos partes, a tal autoria
implode qualquer noção de começo, meio e fim como domínio arquitetado em
narrativa (tampouco ficção, que não gostava, como contou em evento
recente (cito abaixo) o pesquisador Rui Moreira Leite, conhecedor dos
pormenores da biblioteca de Flávio).
Flávio é um aviso
de que é preciso recuar, estendendo a noção do passado até arrebentar os
fios da consciência e do que é contado como progressão. E o fez em
linhagem nietzschiana, em outra chave, mais etnográfica e psicanalítica,
e antes de Walter Benjamin e suas Teses sobre o conceito de história
(1940).
Flávio de Carvalho arregala olhos de menino e às vezes de doido para ver o mundo, escreve Gilberto Freyre no prefácio de Os ossos do mundo.
Perspectiva sempre primeira, primeva. Assim, com dizia, minha
experiência n. 1 em Flávio de Carvalho torna-se recorrente e seriada em
distintos 1s, que evitarei enumerar, poupando-os de minha matemática
espiralada, sempre de volta à infância, mesmo e, sobretudo, ao constatar
impossibilidade de contar os fios de cabelos brancos que me surgem,
cálculo das sucessivas temporalidades em cachos perdidos e recuperados
num tempo que chamo de meu e que me escapole.
Com
Flávio, voltamos à infância de todos, à antiga infância, repleta de cãs,
rombo de ferida que congrega a todos e não cicatriza: As forças
cósmicas e as forças traumáticas, os grandes quadros de feridas requerem
talvez mais que as profundezas do inconsciente para o seu
reconhecimento... requerem a intuição poética do começo das coisas,
escreve no capítulo As ruínas do mundo, de Os ossos do mundo,
que não é seu primeiro livro, mas o primeiro que li como parte da
bibliografia da disciplina que o professor Francisco Foot Hardman
ministrou no primeiro semestre de 2015 na pós-graduação do programa de
Teoria e História Literária do IEL-Unicamp.
O primeiro livro de Flávio de Carvalho (ironia?) intitula-se Experiência n. 2 (1931). Aliás, ninguém sabe afirmar ao certo qual teria sido a primeira. Experiência n. 2 conta
com edição recente (2001) pela Nau editora. Sua ficha catalográfica
indica os seguintes tópicos para catalogação em biblioteca: 1.
Psicologia Miscelânea. 2. Comportamento humano Miscelânea. Bastante
adequada diante do que é de difícil classificação.
Nessa análise psicológica das multidões, que é Experiência n. 2
uma possível teoria e uma experiência, realizada sobre uma procissão
de Corpus-Christi, Flávio apalpa as emoções revoltosas que desperta
nos fiéis ali reunidos, em São Paulo, ao tomar o sentido contrário
dentro do cortejo religioso, que no livro será comparado a uma marcha
militar. Na contramão e vestindo um boné de veludo, Flávio espreita
fisionomias e até flerta com algumas eleitas (bonitas e feias). A
multidão disposta ao linchamento, porque Flávio se negava a tirar o
chapéu, alça o performer às páginas policiais, não sem antes
arrancar-lhe da cabeça o acessório da blasfêmia.
Contemplei
por alguns instantes esta cena curiosa; uma massa de gente levada ao
extremo do ódio desejando me devorar e controlada por uma emoção
qualquer que a retinha indecisa; com a cabeça descoberta, apesar da
tensão do momento, não sei o que me retinha no lugar, provavelmente um
resto de curiosidade, estava no ponto de resolver se devia ou não exigir
a entrega do meu chapéu, quando um jovem que aparentava uns 15 anos se
aproxima e me entrega o chapéu dizendo ponha se for homem.
Publicado três meses após o feito, em setembro de 1931, Experiência n. 2
é dedicado ao papa Pio XI e a dom Duarte Leopoldo e traz desenhos do
artista que registram as etapas ali experimentadas, mas sem o tão
aludido distanciamento científico, é bom notar, já que o que observa na
reação dos outros logo é capaz de identificar em si mesmo, passando da
frieza inicial a um estado de pânico e ao descontrole emocional. Nesse
sentido, Flávio desenvolve também nesses escritos uma teoria do fetiche
como receptáculo de desejos, na qual é capaz de explicitar o fetichismo
envolvido no seu próprio gesto: Me apoiava [...] nos elementos da
procissão para totemizar-me com o deus, levantando em redor de mim um
parâmetro afetivo. O medo rege essas reações que encara na procissão,
ele conclui. Medo, aliás, ao qual retorna como afeto primordial em Os ossos do mundo, classificando-o em reflexão como um produto da civilização.
Os ossos do mundo
completa 80 anos em 2016 (e aqui peço permissão para este registro de
calendário ao falar de Flávio). Sua primeira edição pela Ariel em 1936,
com tiragem de mil exemplares, foi realizada a partir do caderno de
anotações da viagem que Flávio de Carvalho fez pela Europa entre
setembro de 1934 e fevereiro do ano seguinte. A publicação materializa
em palavra a prática de uma espécie de antropólogo a investigar a tribo
europeia, invertendo o ângulo usual de exotização, de um psicólogo da
humanidade, do psicanalista capaz de transformar o chão onde pisaram os
que nos antecederam em divã onde todos deveriam se deitar, o que é o
mínimo a se mencionar para que a obra não seja confundida com um livro
de viagem convencional, a tagarelar o bater canelas por Inglaterra,
França, Bélgica, Itália, Tchecoslováquia, Polônia, Hungria, Áustria e
Portugal. A propósito, o objetivo inicial de Flávio era participar de
dois eventos em Praga, apresentar trabalhos em congressos de filosofia e
psicotécnica e, a partir dessa experiência, escrever um relato a ser
publicado pela Nacional casa editorial que o recusou ao conferir o
resultado fora dos padrões mais turísticos da série de seu catálogo.
Uma segunda edição de Os ossos do mundo
foi publicada apenas em 2005, pela Antiqua, e em 2014 a editora da
Unicamp, com organização do pesquisador, crítico e arquiteto Rui Moreira
Leite e da diretora do Centro de Documentação Alexandre Eulalio Cedae
(Unicamp) Flávia Carneiro Leão, trouxe às prateleiras uma nova edição
revista e ampliada do livro a partir do cotejo com o caderno de viagens e
exemplares que pertenceram ao próprio autor. Como relatou a diretora do
Cedae, detentor de acervo dedicado a Flávio de Carvalho, em encontro
com os alunos da disciplina de Foot Hardman mencionada, ao que tudo
indica, Flávio preparava uma segunda edição de Os ossos..., uma
vez que o exemplar que integra o acervo contém anotações e acréscimos
feitos pelo autor em várias páginas. Idem no caso do exemplar que
Moreira Leite ganhou de um amigo que o teria comprado em um sebo no Rio.
Ambos pertenceram a Flávio.
Os tais ossos aludidos no
título nada mais são que resíduos do mundo, condutores de uma verdade
eclipsada no modo como lidamos com o passado. Uma coleção de ossos é
portanto mais importante a um observador que os ossos do próprio
observador. A luz sobre o passado é o único tipo de luz capaz de
iluminar o presente [...]. A sensibilidade do homem é, precisamente, os
ossos do mundo organizados em coleção. Um objeto, por exemplo, fonte de
recordação, também pode ocupar este lugar estruturante de uma
corporeidade ancestral, visto que vive tanto quanto o próprio
indivíduo.
Objetos que, nesse sentido, não respeitam
uma hierarquia classificável na história da arte ou nas classificações
possíveis nas coleções de museus etnográficos que tanto visitou, porque
ao Flávio interessa tanto a arte produzida pelos realistas do XXVI
quanto os tipos de papel higiênico que cada povo faz uso. O requinte no
papel higiênico representa naturalmente a valorização de um dos locais
mais desprezados do corpo humano, mais destruído pelo chiste da palavra e
do gesto [...] e, para mim, um índice que indicava o valor do local
mais desprezado era também um dos índices da civilização de um povo e do
desejo de elevação do indivíduo. [...] O desprezo pelo ânus é
desconhecido da criança de hoje e do selvagem atrás da história.
Uma homenagem ao artista e aos 80 anos dOssos do mundo
foi realizada no dia 22 de agosto de 2016 na FAU-Maranhão. A Jornada
Flávio de Carvalho, organizada por Larissa Costa da Mata,
pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da
USP, com supervisão de Eliane Robert de Moraes, reuniu alguns
especialistas e outros estudiosos convidados a adentrar pela primeira
vez nesse universo. As falas apresentadas serão reunidas em um livro
ainda sem data de lançamento. Entre seus autores: Rui Moreira Leite, a
própria Larissa, Marcelo Moreschi, Raúl Antelo, Augusto Massi, Fernanda
Arêas Peixoto e Verônica Stigger.
Desse evento, que
abarcou vários aspectos da obra de Flávio, e que mereceriam tantos
outros comentários, destaco, numa tentativa de finalizar o que apenas
começou em mim, alguns dos comentários de Marcelo Moreschi que me
pareceram consonantes ao convite à leitura de Experiência n. 2 e Os ossos do mundo feito
aqui, obras que ele chama de ensaios-experiência. O professor e
crítico também ressalta o movimento geral rumo ao arcaico e uma pulsão
de teoria que busca aplacar a vontade de saber articulada em textos
tresloucados, mas que têm hipóteses. Assim, estamos diante de uma obra
que é e não é ciência, é e não é livro de artista, é e não é
literatura, mais gesto que texto?, observa e se pergunta. Entre as
possíveis respostas fico com esta que Moreschi ensaia: Escritura que
orquestra a impossibilidade. Ou, nas palavras do próprio Flávio de
Carvalho: Aglomerados emotivos para ler. Das minhas, ainda sigo atrás.