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A verdadeira história da “Faccetta Nera”

Na foto: Igiaba Scego. Por Simona Filippini



2016-12-01

Texto de Igiaba Scego, publicado em parceria com a Words Without Borders

“Eu estava em um programa de TV outro dia e aconteceu algo curioso”. Essas são as primeiras palavras de uma postagem publicada recentemente no Facebook por Maryan Ismail, ativista política ítalo-somali. O curioso incidente se deu num estúdio de televisão. Maryan, ativista política que trabalha há muitos anos em Milão, decidiu expressar abertamente sua rebeldia contra o racismo em todos os lugares que puder, e isso inclui a TV. É claro que ela não fala apenas de imigração; toda causa importante a coloca a postos: da luta contra o fundamentalismo (ela recentemente perdeu o irmão para um ataque terrorista de autoria do Al-shabaab em Mogadishu) às questões que afetam as condições de habitação de nossas cidades. “Mas minha pele é negra”, diz Maryan, enfatizando o fato de que a luta contra a discriminação é um dos aspectos mais importantes de sua missão política. E, frequentemente, em especial na TV, seus interlocutores optam por fazer uso da cor de sua pele para atacá-la.

 

Em sua postagem, Maryan detalha um ataque desse tipo: “Um senhor de idade bastante descontrolado, obviamente à beira de um acesso de raiva, estava dando tudo de si para formular uma frase coerente sobre a imigração e seus custos. Abalado por minha vigorosa reação, ele simplesmente começou a cantar a Faccetta Nera na minha cara.”

 

Esse episódio teve como cenário o programa de televisão Forte e Chiaro, transmitido ao vivo na rede local Telelombardia. “É inútil descrever o que aconteceu em seguida”, continua Maryan. “Vou simplesmente dizer: a amargura que sinto quando vejo que mais um tabu foi desrespeitado é sem limite. Chegamos ao ponto em que uma zombaria racista é abertamente jogada em nossa cara, sem um bom motivo e sem pejo algum.”

 

Quanto ouvi essa notícia, meu primeiro sentimento foi de indignação mesclada com solidariedade. Mas então eu disse a mim mesma que o que aconteceu não pode simplesmente ser classificado como racismo. É claro que é racismo, mas também é muito mais. O episódio diz algo sério e profundo sobre a sociedade em que vivemos. Mas o que exatamente?

 

O que Maryan sofreu foi uma agressão explícita e muito grave. Na Itália, essa canção é mais ou menos como usar, the N-word, a “palavra N” em inglês. Em virtude de seu papel na história do fascismo italiano, Faccetta Nera não pode ser considerada uma canção com significado neutro. Vamos explorar essa história abaixo.

 

Se você for uma mulher, e negra, na Itália, alguma referência passageira a Faccetta Nera inevitavelmente surge vez ou outra. Quando eu era menina, eles a cantavam para me humilhar na saída da escola ao fim do dia, e em geral, a velha cançoneta paira no ar como aqueles micróbios dos quais ninguém escapa. Muitas pessoas parecem tê-la como o toque de chamada em seus celulares (como Lele Mora no documentário Videocracy) e considerar essa canção como a mais pura quintessência do fascismo. Mas até pessoas que não afirmam abertamente que são adeptas do Fascismo podem ser seduzidas por seu ritmo marcial. Basta cantarolar por um ou dois minutos, e você vê os braços balançando ao som dos tambores.

 

Uma cena emblemática pode ser vista no documentário Va’ pensiero, de Dagmawi Yimer, em que um grupo de mães canta a velha canção popular para Mohamed Ba, mediador cultural e ator senegalês. Ba acaba de ministrar uma aula, exatamente sobre o tema dos estereótipos, para os filhos dessas mulheres. Quando ele as ouve cantando, mal consegue acreditar. Fica abalado e esmorecido. Tenta explicar a elas que Faccetta Nera é uma canção do reinado de vinte anos de Mussolini, mas as mulheres o ignoram, perdidas que estão no ritmo frenético do rataplã. Elas gostam da canção, sentem alguma forma de prazer proibido em cantá-la, e continuam, indiferentes a como podem estar ferindo os sentimentos de Ba.

 

Mas será que as pessoas que a cantam realmente sabem o que a canção significa? Será que sabem de onde vem essa canção? Como ela foi criada? Será que entendem todas as alusões?

 

Pessoalmente, considero que Faccetta Nera é um paradoxo italiano. Todo ano, quase sempre durante o verão ou no início do outono, surge alguma controvérsia em relação a Faccetta Nera. Seja porque alguém a canta ou então porque algum professor (isso aconteceu recentemente com um grupo de freiras) a toca para as crianças na escola. E prontamente correm rios de tinta, que expressam desde a condenação explícita até uma piscadela maliciosa de apoio tácito. E toda a questão é engolida em uma onda de blá-blá-blá que frequentemente nos deixa indiferentes. Vídeos da canção estão disponíveis online em várias versões, e basta dar uma olhada nos comentários no YouTube para ter uma ideia clara de que aqueles que a cantam não sabem nada sobre a história dessa canção.

 

Na verdade, há uma profusão de manifestações gratuitas nos comentários como “Fascista com muito orgulho”, e “Vida longa ao Duce”. Mas será que as pessoas que escrevem essas coisas percebem que Benito Mussolini odiava a Faccetta Nera? Na verdade, ele tentou bani-la. Na opinião dele, a canção tinha uma natureza muito mestiça: ela tecia loas à união entre as “raças”, e isso era inconcebível em sua Itália imperial, que logo depois aprovaria as leis raciais que privaram os judeus e africanos de direitos e da própria vida. O regime fascista, na verdade, tinha iniciado em 1930 uma grande marcha para conquistar a Etiópia e ganhar possessões ultramarinas exatamente como outras potências coloniais (França e Grã-Bretanha). Com certeza, a guerra promovida por Mussolini contra a Etiópia foi anacrônica, algo verdadeiramente fora de época. Mesmo assim, foi extremamente sangrenta. Em um curto período, a Itália fez o que outras potências haviam demorado cem anos para realizar.  Os italianos desencadearam uma onda de violência sem precedentes contra a Etiópia a fim de subjugá-la. Chegaram até a usar gás venenoso contra populações civis, em uma violação explícita da Convenção de Genebra. Mussolini queria estabelecer seu império a fim de provar para as outras potências europeias que a sua Itália era, também, poderosa, forte e branca.

 

Mas na verdade, é por causa da cor negra – o termo “nera” em Faccetta Nera – que esse regime é relembrado hoje, e talvez esse seja o maior paradoxo. O fascismo, que se concebia como branco e europeu, é associado a uma cançoneta popular que entoava as glórias de uma união “carnal” com os negros que pretendia subjugar.

 

Vamos retroceder um passo. Não são muitos os que sabem que Faccetta Nera foi escrita inicialmente em romanesco, o dialeto de Roma. A canção é de autoria de Renato Micheli, que tinha planos de apresentá-la no Festival da Canção Romana. A letra contém o conjunto completo dos itens da propaganda colonial da época. Os jornais e documentários estavam repletos de África. Os italianos eram literalmente bombardeados com imagens da África do amanhecer até o pôr do sol. As crianças em seus uniformes de jovens fascistas balilla haviam memorizado os nomes das cidades que o fascismo italiano partira para conquistar. Assim, nomes como Mekele, Dire Dawa, e Addis Abebe se tornaram familiares entre os jovens e os mais velhos.

 

O colonialismo italiano não se originou sob o fascismo, mas sim com o governo liberal que se seguiu à unificação da Itália e precedeu o fascismo. Mesmo assim, nos anos 1930 houve uma substancial aceleração dos esforços italianos para conquistar possessões coloniais. Mussolini queria a África, o lugar da Itália ao sol, e a fim de consegui-la ele teve de conquistar os italianos para a causa do império. Todos se mobilizaram, desde os periódicos satíricos como Il Travaso Delle Idee até o mais tradicional Il Corriere della Sera. Um dos temas favoritos enfatizados na propaganda era a escravidão. Os jornais estavam recheados de figuras de homens e mulheres etíopes escravizados. “É o próprio governo deles que faz isso com eles”, explicavam. “É o pérfido Negus; vamos libertá-los.” (Negus é um título real amárico, usado para o rei da Etiópia).

 

A guerra quase nunca era apresentada aos italianos como uma guerra de conquista, mas como uma guerra de libertação. O mecanismo não é muito diferente do que testemunhamos no século XX e que continuamos a observar hoje em dia. Vamos libertar os vietnamitas! Vamos libertar os iraquianos. Vamos libertar os afegãos! Apenas para tomar e explorar a terra deles, no final, como sabemos muito bem.

 

Faccetta Nera se origina nesse contexto como uma canção de libertação. Uma canção, pelo menos na intenção de seu autor, que pudesse engenhosamente tecer elogios a um tipo de “união” entre os italianos e os etíopes. Pela letra, entretanto, notamos imediatamente que o italiano na canção não está interessado em libertar homens etíopes – apenas as mulheres (numa atitude que faz lembrar o que ocorreu recentemente no Afeganistão, onde membros de fora da comunidade travaram uma luta para liberar as mulheres da burqa). E o italiano nessa canção quer uma união com mulheres africanas, e somente com elas. Uma união sexual, carnal.

 

Aliás, esse estereótipo já estava circulando havia algum tempo na Península Itálica. O mito da Vênus negra remonta a uma época muito anterior ao fascismo. A África sempre foi vista por seus colonizadores (e não apenas pelos italianos) como uma terra virgem a ser penetrada – literalmente. Ou, como o escritor colonial Mitrano Sani registrou em 1934 em Femina Somala [Mulher Somali], referindo-se a sua amante originária do Chifre da África: “Elo não é uma pessoa. Ela é uma coisa [...] que deve entregar seu corpo quando o homem branco tem desejos carnais.” Em outras palavras, uma terra disponível. E essa disponibilidade frequentemente se traduzia na posse física das mulheres do lugar, por meio de determinadas formas como o concubinato, casamentos de conveniência e muitas vezes o estupro puro e simples.

 

Basta dar um giro pela Internet ou no mercado Porta Portese em Roma, ou em qualquer outro mercado popular italiano, para ver as fotos desse tipo de abuso. Recentemente vi uma no livro de David Forgacs, Italy’s Margins: Social Exclusion and Nation Formation since 1861 [As margens da Itália: exclusão social e formação nacional desde 1861] (Cambridge University Press, 2014), onde uma mulher eritreia é imobilizada na posição de um “crucifixo” por vários marinheiros italianos sorridentes, que provavelmente acabaram de estuprá-la ou estão prestes a fazê-lo.

 

Nesse sentido, Faccetta Nera é uma canção sexista, não apenas racista. Uma cançoneta popular que esconde uma clara referência à violência sexual por trás de uma fantasia de libertação. Não é à toa que num determinado ponto a letra diz: “Nossa lei é a escravidão do amor”. Temas como esse podem ser encontrados também em outras canções populares da época, como a Africanella ou a Pupetta Mora. Mas também em composições mais sofisticadas (e anteriores) como a Aída, de Verdi: Também Aída, como a Carinha Negra (que é o que significa Faccetta Nera), é uma escrava e a única maneira pela qual ela pode ser redimida de sua condição é tornando-se objeto do desejo de um homem.

 

Desde que foi escrita, Faccetta Nera não encontrou paz. Micheli não conseguiu apresentá-la no Festival da Canção Romana. Ela só foi musicada mais tarde por Mario Ruccione e cantada por Carlo Buti, que a transformou em um sucesso. Mas sua primeira apresentação foi no Teatro Quattro Fontane de Roma (que agora é um cinema). Ali uma jovem negra era trazida ao palco acorrentada, e então Anna Fougez, uma estrela do teatro de revista da época, nascida na região da Puglia mas que adotara um nome artístico francês, vestida com a bandeira italiana e brandindo uma espada, a libertava. A partir desse momento, a canção decolou.

 

Legionários italianos a caminho da África para lutar na guerra colonial de Mussolini a cantavam, e a canção se transformou num dos grandes sucessos dos vinte anos do fascismo italiano, juntamente com Giovinezza [Juventude] e Topolino va in Abissinia [Mickey Mouse vai para a Abissínia]. Mas a letra inicial de Micheli não obteve a aprovação do regime, que se intrometeu várias vezes. A referência à Batalha de Adwa foi imediatamente expurgada. O regime considerou intolerável que uma derrota italiana fosse de alguma forma comemorada, especialmente tendo sido a primeira batalha vencida por um país africano contra as forças do imperialismo europeu. Também foi eliminado todo um verso que descrevia a Faccetta Nera como “uma irmã para nós”, e uma “bela italiana”. Uma mulher negra, na visão do regime, simplesmente não podia ser italiana. Isso implicaria direitos de cidadania que o fascismo italiano estava longe de estender aos africanos conquistados. Direitos de cidadania que, por um traiçoeiro capricho da ironia histórica, parecem igualmente enganosos no presente.

 

Apesar dessas mudanças, a canção continuou a irritar o regime, mas era popular demais para ser tirada de circulação. O governo fascista procurou fazê-la desaparecer e, em uma tentativa particularmente canhestra, inventou uma Faccetta Bianca [Carinha Branca] com letra e música compostas pela dupla Nicola Macedonio e Eugenio Grio. Uma canção na qual uma jovem dá adeus a seu noivo legionário de partida para a África. Uma carinha branca que imaginaríamos bem doméstica, submissa e virginal:

 

Carinha Branca, quando a deixei

naquele dia no porto, ali ao lado do vapor

e junto com os legionários embarquei,

seus olhos negros me mostravam que seu coração

estava tão comovido assim como o meu,

Enquanto sua mão dava adeus!

 

Obviamente a competição foi desigual. Os italianos se sentiam atraídos pela disponibilidade sexual que a outra canção prometia: a liberdade e a regeneração do homem italiano por meio do abuso de um corpo negro passivo. Faccetta Nera também foi objeto de acusações de plágio. O caso chegou realmente a ser apresentado diante de um juiz.

 

Mas essa canção tem muito a nos dizer sobre a Itália dos dias atuais. O corpo negro ainda está no centro do palco. Um corpo profanado, frequentemente apresentado nos noticiários da noite como um fantasma ou como um cadáver invisível nos mares. Mas também é um corpo desejado, inatingível. Um corpo que vemos impresso nos pacotes de açúcar e que pisca para nós de um estúdio de TV, comprimido em um maiô de látex. Um corpo que é usado e abusado. Um corpo que sempre se espera que seja belo.

 

A mulher abissínia não pode ser outra coisa além da bela mulher abissínia. Ela não pode ser feia, desfigurada, aleijada, doente ou indisponível. Seu corpo vive através de vários paradoxos. De um lado, ele é desejado; de outro, ele é insultado, negado, aprisionado. Na Itália atual, as Carinhas Negras não são apenas aquelas com pele negra: basta sair dos trilhos do que a sociedade considera “normal” para provavelmente ser considerada fácil, acessível, estuprável. Você é bissexual? Transexual? Punk? Vintage? Você está fora dos padrões do que é normal? Então seu corpo se transforma em propriedade comum. Um corpo para ser liberado por meio do estupro e da dominação.

 

E talvez seja nesse subtexto que encontramos a chave para a popularidade persistente da canção. A sociedade italiana ainda leva consigo uma bagagem masculina sexista da qual não consegue se livrar, e que com muita frequência não é capaz nem de mencionar.

 

Como alternativa a isso, precisamos falar sobre o assunto, principalmente nas escolas.

 

Eu falo muito sobre a importância de deixar que os jovens ouçam essa e outras canções fascistas. Estou cada vez mais convencida de que é apenas por meio de um estudo aprofundado do fascismo, com todos os seus ingredientes de miséria, estereótipos, propaganda e sexismo, que poderemos evitar sua recorrência. O verdadeiro perigo está no esquecimento. Por meio de uma análise detalhada de Faccetta Nera¸ talvez seja possível desconstruir seu texto, descolonizar as mentes, defascistizar a sociedade, reformar nossa cultura política, que enxerga o Outro como um bode expiatório por definição, a válvula de segurança para tudo o que está errado em nossa sociedade. Seria um genuíno avanço se fôssemos capazes de conversar sobre essa canção com alguma equanimidade. Um avanço para esta nossa Itália, um país que tão raramente enfrenta a si mesmo.

 

*

Igiaba Scego nasceu em Roma em 1974 de uma família de origem somali. Escritora e jornalista, possui um doutorado em educação (em assuntos pós-coloniais) e um extenso trabalho acadêmico na Itália e em todo o mundo. Entre seus livros estão La nomade che amava Alfred Hitchcock (Sinnos), Rhoda (Sinnos) e Oltre Babilonia (Donzelli). Suas memórias La mia casa è dove sono (Rizzoli) ganhou o Prêmio Mondello da Itália em 2011. Ela também escreveu o título de não-ficção Al Roma Negata. Percorsi postcoloniali nella città (Ediesse) em colaboração com o fotógrafo Rino Bianchi. É colaboradora da revista Internazionale e do suplemento La Repubblica, Il Venerdì di Repubblica. Recentemente publicou um livro sobre Caetano, intitulado Caetano Veloso. Camminando controvento. Seu último romance, Adua (Giunti), é um retrato de uma mulher que se procura em uma longa viagem da Somália à Itália. Será publicado em inglês pela New Vessel Press.

 

*

Traduzido da versão em inglês de Antony Shugaar por Lenita Esteves - Departamento de Letras Modernas - FFLCH - USP
ELLI - Programa de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês
TRADUSP - Programa de Estudos da Tradução.

 

*

Texto publicado originalmente na Words Without Borders e cedido para a Revista Pessoa no âmbito de um intercâmbio de conteúdo entre as duas revistas. Em contrapartida, a Words Without Borders publicou da revista Pessoa em novembro o conto Os sapatos de meu pai, de Victor Heringer.

 

 



Revista Pessoa
 



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