"A multidão cresce. Alguns dos romeiros estão na estrada há cinco dias, nos caminhos esburacados do interior. Um deles, que tem o ar de assírio, ornado de uma bela barba negra, conta-nos que foi salvo de um naufrágio pelo Bom Jesus, após uma noite e um dia passados nas ondas furiosas, e que fez a promessa de carregar na cabeça uma pedra de 60 quilos durante a procissão. Mas a hora se aproxima. Da igreja saem os penitentes negros, depois brancos, com roupas clericais, depois as crianças vestidas de anjo; em seguida, os que poderiam ser os filhos de Maria e, ainda, a imagem do próprio Bom Jesus, atrás da qual adianta-se o homem da barba, de dorso nu, carregando uma enorme laje na cabeça. Por fim, vem a orquestra, que toca ‘dobrados’, e a multidão de peregrinos, afinal, a única interessante, já que o resto é bastante sórdido e comum. Mas a multidão que desfila ao longo de uma rua estreita, enchendo-a por completo, é efetivamente o agrupamento mais estranho que se possa encontrar. As idades, as raças, a cor das roupas, as classes, as doenças, tudo fica misturado numa massa oscilante e colorida, estrelada às vezes pelos círios, acima dos quais explodem incansavelmente os fogos, passando também, vez por outra, um avião, insólito neste mundo intemporal. Mobilizado para a ocasião, ele ronca a intervalos regulares, acima das autoridades elegantes e do Bom Jesus. Vamos esperar a procissão em outro ponto estratégico, e, quando ela torna a passar diante de nó, o homem da barba parece crispado de cansaço, as pernas bambas.” Diário de viagem de Camus