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"Torto arado" nasce na Bahia, atravessa o Atlântico e se afirma como literatura universal

Foto: Itamar Vieira - Torre de Belém, Lisboa



2019-03-05

O que distinguirá a grande literatura da literatura mediana será a capacidade de extrair do único o universal, e isso é coisa que Vieira Junior faz de forma muito segura. Para isso, contarão não apenas o percurso de investigador científico (é doutor em Estudos Étnicos e Africanos), com pesquisa sobre a formação de comunidades quilombolas no interior do nordeste brasileiro, mas também as leituras acumuladas e a experiência de escrita, tal qual treino num ginásio, que lhe permitiu ganhar e aplicar as ferramentas técnicas necessárias à desenvoltura de uma narrativa desta dimensão.

 

Não me lembro da última vez que um livro de um autor brasileiro gerou tanta mossa em Portugal. Menos me lembrarei da última vez que um só romance venceu o Atlântico, trazendo à Europa uma literatura às costas. Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, ainda não foi publicado no Brasil. Para já, é em Portugal que podemos ter nas mãos um romance feito a ferros.

O livro, vencedor do Prêmio Leya 2018, acabava de aterrar e já o burburinho começara e a crítica dos círculos informais e mais tarde formais se rendera. Trata-se de um romance em que a prosa nunca encontra solavancos, em que o tempo é manipulado com mestria, em que o social é um elemento interno da narrativa, em que as descrições físicas quase saem do papel, em que as personagens são gente, em que a política se escancara mas a milhas de um panfleto. Rememorará, por isso, Jorge Amado, Graciliano Ramos e Raduan Nassar, e isto numa altura em que a prosa vinda do Brasil parece estar metida no pantanal da auto-ficção.

Itamar Vieira Junior, crítico desta estratégia literária, leva o desafio da escrita a um patamar que não se via em literatura brasileira há vários anos, e fá-lo consciente de que a narrativa não se desfia porque sim. Não é que haja um intento político declarado; o que há é uma universalidade nas personagens e nas situações que parecem acantonadas numa realidade que se adivinham a anos-luz de um português. Torto Arado nunca poderia sair das mãos de um autor de Portugal, ou pelo menos não de um que não tivesse décadas de Brasil em cima. A ligação que o autor cria com os leitores portugueses, e no caso com backgrounds sociais tão distintos dos das personagens, dá-se através do vínculo humano chamado empatia. Não a de cada leitor, mas a do autor, que mergulhou a eito no abismo psicológico, emocional, geográfico, socio-económico, e descobriu o que nos toca.

O leitor estrangeiro desta obra pouco terá em comum com Bibiana ou Belonísia, e por isso que este livro agrade foi até uma surpresa para o autor: estaria o júri do Prémio LeYa interessado em encher estantes com aquele canto da Bahia? O ponto principal é que, se há diminuto no universal, também há universalidade no que nos parece tão recôndito.

O que distinguirá a grande literatura da literatura mediana será a capacidade de extrair do único o universal, e isso é coisa que Vieira Junior faz de forma muito segura. Para isso, contarão não apenas o percurso de investigador científico (é doutor em Estudos Étnicos e Africanos), com pesquisa sobre a formação de comunidades quilombolas no interior do nordeste brasileiro, mas também as leituras acumuladas e a experiência de escrita, tal qual treino num ginásio, que lhe permitiu ganhar e aplicar as ferramentas técnicas necessárias à desenvoltura de uma narrativa desta dimensão.

Em Torto Arado, a acção gira, à primeira vista, em torno da vida de uma família. À segunda, gira em torno do contexto social que define, ditando, a vida dessa família: a precariedade, a insegurança, a hierarquia. A história, afinal, é sobre uma família de trabalhadores de uma fazenda no sertão da Bahia, descendentes de escravos. Tudo se passa após a abolição da escravatura, mas, com o desfiar da narrativa, é claro que a abolição não significou uma consolidação de liberdades, uma horizontalidade de direitos, o fim da supremacia dos brancos, dos proprietários – dos proprietários brancos. A crítica ficará sempre aquém, porque não será aqui que Itamar Vieira Junior mostrará ao leitor ou ao potencial leitor como fintou a caricatura, a pena ou o queixume, antes criando personagens imbuídas de um sentido tal de dignidade que qualquer um pode se espelhar nelas. É que viramos as páginas e somos aquela gente, recusamos a vergasta, recusamos o declínio – e fazemo-lo sem sermos heróis, fazemo-lo só por sermos gente.

Itamar Vieira Junior veio para marcar a literatura de língua portuguesa. Escreve não de caneta na mão, mas de tocha, e ergue-a com músculo. Belo, poderoso e comovente, apresenta-nos a grande literatura com uma simplicidade que atormenta. E poderia ser de outra maneira?

 



Ana Bárbara Pedrosa

Estudou literatura, linguística, tradução e economia e atua como pesquisadora, editora, revisora, tradutora e linguista. É autora do romance Lisboa, chão sagrado. Viveu no Brasil e nos Estados Unidos. Atualmente vive em Portugal.




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