No âmbito do projeto Literatura Brasileira Hoje, o escritor Evando Nascimento visita o programa de pós-graduação em Letras da UERJ, no próximo dia 18, quinta-feira.
Às 16h30, Evando Nascimento dialogará com os estudantes de pós-graduação sobre sua obra; às 19h30, ele apresentará seu último livro de contos, Cantos profanos (Editora Globo, 2014). Leia abaixo um dos contos selecionados pelo escritor. A conversa será mediada pela professora da UERJ, Ana Lúcia Machado de Oliveira.
Os dois encontros são abertos ao público.
A revista Pessoa publica crônicas de cada encontro na seção Literatura Brasileira Hoje. Veja a descrição do projeto, idealizado por João Cezar de Castro Rocha.
A crônica de Ieda Magri sobre o encontro com João Almino pode ser lida aqui.
O primeiro encontro foi registrado por Julia Tomasini.
Trecho do último livro de Evando Nascimento que será apresentado no próximo evento na UERJ.
TERRA À VISTA
Inspirado no filme Gravidade e no projeto Mars One para colonizar Marte
Tentarei fazer o relatório mais isento possível – não vai ser fácil, isenção e equilíbrio são as qualidades menos compartilhadas pelo ser dito humano. “Dito” porque nossa humanidade há muito se desfigurou e assumiu formas antes inimagináveis, perdendo toda a essência, se é que jamais teve alguma. Quem um dia chegar a ler estas linhas não queira nelas ouvir um tom de reprovação moral, uma nostalgia do nada. Não acredito em essências, mas em estados, e o de nosso antigo planeta se encontra para lá de deplorável. Argumentarão que sempre foi assim, desde que o homo sapiens pôs os pés na Terra, todas as outras espécies se viram ameaçadas. Trata-se de um predador universal, de forma direta (matando e comendo) ou indireta (destruindo vidas por tabela), coisa jamais vista.
Mas não vou me perder em interpretações metafísicas. Aos fatos. Pois bem, estamos agora às vésperas do ano 2150, ao contrário do que pregavam os apocalípticos conseguimos chegar até aqui, mas nada garante que prosseguiremos, juntos ou separadamente. Sou o derradeiro sobrevivente deste módulo enviado para cá em 2080 e pertenço à segunda geração de filhos de migrantes. Formávamos até recentemente a mais importante das quinze colônias implantadas em solo marciano, numa colaboração internacional. “Internacional” é modo ultrapassado de dizer, vício de linguagem que herdei dos bisavós, como consignado nos livros de História. Segundo consta nos atuais informes, não há mais nações, apenas conglomerados que tentam administrar os recursos finais do planeta. Escrevo essas coisas para o caso de, eventualmente, um navegante intergalático um dia se deparar com as ruínas do que fomos. Perdemos toda a identidade restante, o canibalismo grassa faz décadas entre os descendentes, numa guerra sem fim.
Retomo o fio, não posso me desgarrar no vácuo sideral, já estou imerso na quase ausência de luz há algum tempo, contando com uma única megabateria para o computador e para lâmpadas agonizantes, além de servir para alimentar o sistema central de homeostase. Lá na Terra, faz mais de um século inventamos a vida artificial. Fomos capazes, quer dizer, eles foram, meus ancestrais, de sintetizar seres unicelulares inicialmente. Dez anos depois surgiram os primeiros multicelulares de laboratório, eram anfíbios, porém viviam melhor em meio aquoso do que no seco. Em seguida, durante três décadas, os cientistas reconstituíram os grandes estágios da vida, começando pelas amebas, passando por diversos invertebrados, depois vertebrados, répteis, mamíferos, tudo em miniatura relativa, imitando de forma aproximada os fósseis que restaram dos cataclismos milenares.
Um belo dia, miniplantas e minianimais passaram a coexistir com as espécies preexistentes, num entrecruzamento alentador. O dilema da nutrição parecia resolvido, a capacidade de produção e de reprodução da vida se mostrava infinita, por assim dizer a perder de vista. Todavia, ah, todavia, uma das experiências sintetizadoras engendrou uma bactéria incontrolável, a qual destruiu não só todas as formas e gêneros de laboratório, mas também dois décimos da humanidade. A epidemia foi considerada a nova peste negra, desde o final da Idade Média, nada igual.
Quando enfim eliminaram a invasora, precisaram recomeçar as pesquisas do zero, a única vantagem foi a redução populacional. Entretanto, resumidamente, em duas décadas a população mundial não só se refez mas explodiu em definitivo, destruindo outras espécies e reduzindo drasticamente, como se diz, o espaço de habitação. Não há mais lugar desocupado no globo, das savanas às geleiras, dos arquipélagos mais inóspitos aos desertos mais áridos, tudo foi apropriado, saqueado, extorquido.
Foi aí que se retomou o plano arcaico de colonizar nosso planeta vermelho, projetos foram tirados da gaveta, surgiram diversas propostas, a melhor foi escolhida. Por essa altura, nos continentes da velha Terra se formaram blocos geopolíticos, a exemplo da pioneira União Europeia do Leste e do Oeste: as Américas se alinharam em dois territórios administrativos, do Sul e do Norte; a África, em três (Magrebe, Zona Subsaariana até a altura da linha do Equador e Zona Austral). Já Rússia e China formaram o maior e mais poderoso bloco mundial, separado do resto da Ásia, que se aglutinou em torno da Índia, do Japão (hoje uma pequena ilha deserta, depois de uma série de terremotos e contaminações radioativas, quem escapou foi morar noutro lugar), Vietnã, Coreias enfim apaziguadas e outros. O Oriente Médio praticamente desapareceu do mapa, depois da Terceira Guerra Mundial, com bombardeios nucleares (do Irã até Israel, tudo virou terra devastada e contaminada, proibida para trânsito humano, não sobrou qualquer etnia outrora habitante da região, somente os residentes no estrangeiro). A Austrália é o único continente que ainda corresponde a uma nação, por força de isolamento, mas, depois da separação definitiva do Commonwealth, se candidata permanentemente a se agrupar a uma das Américas, apesar da distância. O gelo dos polos derreteu e hoje ambos são considerados zona franca, dominada pela máfia global, por assim dizer terra de ninguém.
(A vida, esse tecido frágil que tentamos reinventar, dia após dia, aqui e lá, lá e cá. Ser sobrevivente é um modo de testemunhar sob escombros e à beira do caos. Narro para me nutrir de minha história e da dos outros, tentando me apossar de meu passado, quiçá da História. Em vão. Sobram buracos, lacunas, falta substância, matéria concreta – vagueiam fiapos de energia estendidos sobre um imenso buraco negro, que tudo suga.
Há pouco o sol se pôs e só deve retornar em doze horas, medito no breu parcial, de olhos bem abertos – nada mais melancólico do que o crepúsculo nestas planícies desoladas, o céu rosa plúmbeo através da hipervidraça. Minha mente, a síntese passiva dos mundos: tudo o que não sou se encontra dentro de mim neste momento liminar. Me tornei arquivo ambulante e de alto risco, em solidão compacta.
– Haverá planetas irmãos? Desde que foi descoberto, o nosso tem sido associado à Terra, como se originários do mesmo ventre, porém não gêmeos. Desconfio desses parentescos forçados, outro modo disfarçado de resolver o enigma do abandono de Deus; a figura divina é a maior utopia que inventamos... Será que darei conta da verdade do que fomos até agora, logo eu que jamais procriei, desconhecendo intimamente a força da reprodução? Intuo que os segredos da espécie se dissiparão com o derradeiro de seus representes. Eu.
A verdade do Universo, seus mais íntimos mecanismos, isso então está condenado ao aniquilamento absoluto. A não ser que haja inteligências externas para se incumbirem do que minha narrativa, por razões de limitação, não conseguirá preservar. Maldita finitude! Vão, tudo tonto e vão, névoa, nada...)
Sou um autêntico marciano: embora de linhagem terráquea, conheço o lugar de origem apenas por imagens de vídeo e fotos digitais de altíssima resolução, quase reais de tão vívidas, espectrais. Para um desterrado, o pior exílio é jamais ter pisado no solo originário. Ignoro o caso de algum de nós que tenha feito a viagem em sentido contrário, aqui somente se desembarca para sempre e nunca mais. É claro que aprendi a amar essas paragens de dióxido de carbono, em tom diurno amarelo-castanha, dentro de perpétua redoma até recentemente provida de todo conforto, agora no entanto. Temos acesso a todos os saberes provenientes de lá, apesar de utilizarmos muito pouco. Nunca nos deram o direito a pesquisa própria, somos antes cobaias em situações extremas. Miro e admiro todas as noites no telescópio a esfera azul, a longuíssima distância, sem ter noção concreta de como vivem os outros (o verdadeiro mundo para mim não passa de fantasmagoria).
Subsisto por enquanto num eterno e provisório presente, tentando unir o tédio do passado a uma futura energia. Meu único dom é a telepatia, por meio de um microchip instalado em meu cérebro quando nasci e a que ainda recorro às vezes para me comunicar com o invisível rival. Mas ele não responde, nem sei se continua vivo ou se o inventei para não endoidecer de vez, metade de minha lucidez se foi. Os familiares me visitam com frequência, dão conselhos e se esfumam no ar. Onde estão todos? Decerto dormindo profundamente. O painel geral só registra dois sinais residuais de vida, o meu é um deles.
O fato é que, até onde conseguimos acompanhar deste canto do Universo, recentemente foi desencadeada uma Quarta Guerra, em razão da escassez de recursos e da fome generalizada. Os governos dos agrupamentos geopolíticos, referidos acima e denominados de UNOs, perderam o controle para movimentos anárquicos, que se apossaram das novíssimas máquinas de guerra. Como sempre, o mais potente triunfará, malgrado todos os outros povos. Dizem que, junto com o bloco sino-russo, os sul-americanos são os mais aptos, hoje, ao combate final. Onde antigamente se situavam os Estados Unidos restam apenas capitais em ruínas; primeiro foi Detroit, depois Los Angeles, em seguida Nova York, Boston, Chicago, Miami, umas após outras destruídas, para não dizer deletadas em definitivo. Os vestígios romanos tiveram mais sorte...
Acompanhamos tudo isso por meio do material enviado regularmente até o ano passado nas espaçonaves de manutenção, que quase não chegam mais. Esse é o drama, das quinze colônias marcianas, apenas duas resistem, numa me encontro sozinho, o derradeiro companheiro sucumbiu há duas semanas, prefiro não informar como. Sei que há baterias e víveres escondidos em algum túnel entre o segundo e o terceiro módulo, mas ainda não encontrei o roteiro. Pode ser que meu único adversário, o do décimo módulo, lá chegue antes de mim, preciso continuar, não posso continuar – farei tudo para conquistar as reservas, onde quer que estejam, tenho um corpo de vantagem.
Até propus compartilharmos o que resta, não me respondeu, mau sinal. Se é homem, mulher ou transgênero, as três formas sexuadas em que majoritariamente nos dividimos, tampouco sei. Aguardo que também chegue a tempo a derradeira carga de provisões, neste instante a caminho e bem próxima do pouso, se não colidir com algum asteroide, como de outras vezes. Quem obtiver os mantimentos sobreviverá por quanto tempo. Este depoimento é uma mensagem na garrafa para algum errante navegante decifrar em seu próprio idioma. Não há o que lamentar, aconteça o que acontecer. Mesmo que estejamos rumando ao Nada, os humanos terão cumprido sua trajetória como qualquer outra forma de vida, com começo, meio e FIM. (18.X.13)