O número um consola-me dos demais números.
Um ser humano consola-me dos outros seres humanos.
Uma vida consola-me de todas as vidas,
possíveis e impossíveis.
Roberto Juarroz, in A Árvore Derrubada pelos Frutos
O que eu quero mesmo é ter companhia para ir caminhar ao fim da noite. Ali pelas onze, onze e meia. Nunca tenho a mesma energia durante o dia.
A estrada nacional que vejo do meu sofá está rodeada de árvores e arbustos. Ladeiam-na alguns postes de eletricidade de luz amarelada que a tornam profundamente cinematográfica, principalmente em noites de nevoeiro – o David Lynch talvez gostasse dela tanto como eu.
Há umas semanas, enquanto a olhava noite dentro, reparei no voo rápido de uma coruja branca que esvoaçou para dentro da copa de um pinheiro manso. Observar essa estrada é como ver um filme. Quero mesmo ir caminhar de noite. Chego a estar já calçada, de casaco e gorro e luvas, sentada no corredor, ao pé da porta. Pronta a sair.
Com um nó no estômago, decido ficar. Tiro as luvas, o gorro, o casaco e as sapatilhas muito devagar. Sabe-me a derrota, aquela lentidão, aquele baixar dos braços. A derrota da mulher que sabe que não deve andar sozinha numa estrada escura e isolada, depois do anoitecer.
*
Na aldeia do meu pai, dizem que “sou sozinha”. Não dizem que “estou” sozinha. Dizem que “sou sozinha”.
Referem-se ao facto de não partilhar a vida ou a casa com um homem.
Não sabem que sou sozinha desde que me lembro de ser gente.
Desde os dias em que a minha mãe me deixava de manhã cedo, pouco mais que bebé, em casa da minha avó, lavradeira atarefada com outros netos à sua guarda, para poder ir para outra casa cuidar de outras crianças, de nomes com diminutivos.
Desde os recreios que sabiam a castigo, sempre afastada dos outros meninos da minha sala, na escola.
Desde as horas e horas e horas a ver televisão ou a analisar as fotografias antigas da gaveta do fundo do guarda-vestidos, a tentar perceber com quem me parecia, enquanto os pais não chegavam do trabalho.
Desde o dia em que a minha avó morreu e me disseram, antes de baterem a porta, trancando-a depois por fora: “ficas em casa, ainda és muito nova para funerais.”
*
Presumi que, uma vez em Nova Iorque, faria amigos rapidamente e passaria dias inteiros em bares ou nos parques a conversar, os fins-de-semana em festas a conhecer gente de todo o mundo.
Demorei um mês e meio a perceber que nenhum dos meus onze colegas de curso, todos norte-americanos, todos residentes em Nova Iorque, me ia convidar para um café, que fosse. Eram fortíssimos na small talk, elogiavam sempre os meus brincos ou a minha camisola ou o meu caderno, mas a conversa nunca excedia os dois minutos. Toda a gente desaparecia depois das aulas, cada um por uma rua diferente, num passo infinitamente mais rápido do que o que eu ousaria tentar praticar.
Quase irritada, muito desiludida, imaginava como seria caso aquelas aulas decorressem no Porto: ao fim da primeira aula, estaríamos todos no Pipa Velha a pedir sandes de pão alentejano para a estrangeira, a oferecer-lhe finos, a convidá-la para jantar lá em casa na sexta-feira, para provar comida típica.
Conheci o Bruce através do Tinder. Ele era muito alto, muito negro, muito bonito. Tinha um perfil discreto, apontava arquitetos e livros e músicos preferidos. Começámos a conversar online e rapidamente percebemos que tínhamos o mesmo sentido de humor. No nosso primeiro date, convidou-me para me juntar a ele no seu programa normal ao domingo: encontrámo-nos num clube de jazz minúsculo, longe do círculo turístico, no Harlem. Quando abri a porta, senti que, finalmente, tinha chegado a Nova Iorque. O senhor que nos recebia era todo ele um gigante sorriso. A cave era amarela e estava a abarrotar de gente. As bebidas eram servidas a partir de garrafas miniatura, o que me levou de volta a casa dos meus pais, onde há uma pequena coleção de garrafinhas de vinhos conhecidos. De vez em quando sentia o aroma a frango frito e a bolo ensopado em rum. A música era improvisada. Guitarristas, organistas, saxofonistas, trompetistas, sempre com os tais sorrisos gigantes, sempre com o suor a escorregar-lhes da testa, iam alternando entre si. Ficámos amigos, eu e o Bruce – talvez algo mais do que isso, a dada altura. Caminhámos muito pelo Harlem, onde ambos vivíamos. Mostrou-me cantos de Nova Iorque que eu não conheceria de outra forma.
Falei ao Bruce da indiferença dos meus colegas relativamente a mim, a única estrangeira do curso, e do quanto isso me surpreendia. Perguntei-lhe se para ele também tinha sido assim tão difícil fazer amigos em NY. Ele, que era caribenho e vivia em Nova Iorque há quase vinte anos, respondeu, serenamente, que não tinha amigos.
“Então e os teus colegas do trabalho, aqueles que me apresentaste no outro dia? Vocês estavam a fumar juntos, pareciam amigos…”
“Nada disso. Esses são só meus colegas. Não sei nada sobre eles. Nem sei onde vivem, sequer.”
Não sei bem que cara lhe fiz em resposta. Mas ele sentiu que devia acrescentar:
“Em Nova Iorque, as pessoas vão e vêm. Chegam e partem. Ninguém vem para cá com intenção de ficar para sempre. As pessoas não se querem afeiçoar a ninguém, porque vão sofrer no dia em que se forem embora.”
*
Os comboios que vinham de longe eram sempre mais bonitos do que os outros todos. Uns carregavam tesouros preciosos e raros, os outros serviam apenas para fazer barulho e espalhar formigas por todo o lado de cinco em cinco minutos. Uns eram brancos e vermelhos – até o seu apito era elegante. Os outros eram cinzentos e corriqueiros e banais e dispensáveis.
A estação ficava mesmo em frente à casa dos meus pais. O meu avô paterno chegava invariavelmente a uma terça-feira, ali pelas onze e meia da manhã. Eu plantava-me durante toda a manhã junto à porta de entrada, espreitando pelo postigo. Era uma espécie de estudo dos outros. Eu não estava autorizada a sair para brincar na rua, nem a fazer amigos entre os vizinhos, gente barulhenta e conflituosa. Os meus pais trabalhavam tanto, mas tanto, entre um comboio cinzento e outro e mais outros tantos, que pouco tempo lhes sobrava para se passearem na rua comigo – ou para me deixarem respirar o mundo. Ainda hoje há vizinhos dos meus pais que não sabem que eu existo.
A única pessoa para quem nunca fui transparente foi o meu avô. O que chegava invariavelmente à terça-feira, ali pelas onze e meia da manhã.
Pousava a cabeça no postigo, eu, e ali me ficava a ver as pessoas crescidas e as crianças e os carros e os comboios – até chegar o tal. O branco e vermelho, o bonito e precioso e raro. O momento em que o meu avô se aproximava era o de mais profundo júbilo. Com ele chegava o abraço, o meu abraço, e uma caixa com laranjas ou uvas ou pêssegos quase brancos ou, o prazer supremo, cerejas – tudo coberto com bonitas folhas muito verdes, que traziam o cheiro da terra.
Entrava-me, então, o mundo pelo postigo.
*
Uma psicóloga disse-me que o meu problema era que, no fundo, eu não desejava com suficiente vontade um homem decente. Por isso é que não conhecia ninguém de jeito. Calhavam-me os imaturos, os manipuladores, os incertos, os emocionalmente indisponíveis. A responsabilidade – a culpa! – era toda minha, afinal.
“O que tu queres, na verdade, é continuar a ser a vítima. Esse papel é-te mais confortável. Por isso é que continuas sozinha.”
Fiquei convencida disso durante algum tempo. Confiava muito nela, tinha-me salvado a vida uns anos antes. Acreditei naquela sua teoria, habituada que estava a assumir culpas alheias, habituada que estava a pensar que o problema era eu, sempre eu.
Soltei-me daquela loucura no dia em que, numa sessão de terapia de grupo, a psicóloga convidou uma taróloga para se juntar a nós. Havia cinco ou seis mulheres naquele grupo terapêutico. Algumas faziam terapia há anos, como eu; outras viviam ali a sua primeira experiência terapêutica. Éramos pessoas ancoradas a bloqueios, a traumas, a agressões, a abusos de toda a espécie. As respostas que procurávamos estariam, afinal, em pedaços de cartão com bonitos desenhos espalhados pelo chão.
Saiu-me a Roda, quando me pediram que tirasse uma carta. A taróloga disse-me que a carta significava que eu devia sair mais, socializar, conhecer gente, “entregar-me ao mundo”. Ri-me. Respondi que era bastante sociável, saía mesmo muito, todas as semanas ia a bares, a concertos, ao teatro, ao cinema, a conferências, a apresentações de livros. Conhecia gente nova a cada passo. A taróloga retorquiu rapidamente: “Ah! Então é ao contrário. Deve resguardar-se, passar mais tempo sozinha.”
*
Um abraço de um nova-iorquino parece-se muito com o abraço de um pato. Os nova-iorquinos levantam os braços, mas não sabem bem o que lhes fazer depois – tal como um pato que tente abraçar outro pato. Não querem aproximar-se demasiado, para não haver lugar a processos judiciais por assédio; nem durante muitos segundos, para não chegar a ser um “momento”. A intimidade aterroriza-os. Ainda não percebi se não sabem ou se não querem sentir essa intimidade.
Eu estava a viver uma história quase inacreditável, uma espécie de sonho americano. Tinham-me oferecido, de forma totalmente inesperada, uma bolsa para ter aulas de escrita criativa em Nova Iorque. Tinha viagens e alojamento pagos e uma quantia generosa para viver na cidade que nunca dorme. O preço era não ter ninguém por perto com quem partilhar o entusiasmo, o espanto. Aquela solidão toda paralisou-me durante algum tempo.
Lembrava-me muitas vezes daquele documentário sueco ou dinamarquês sobre experiências solitárias – uma pessoa era convidada a experienciar, absolutamente sozinha, um evento que, normalmente, se desenrolava na companhia de muitas outras pessoas. Um homem foi convidado a assistir a um concerto do Bob Dylan. Absolutamente sozinho, com toda uma bela e vazia plateia de veludo vermelho a rodeá-lo. Qual era a sensação mais forte? O entusiasmo por se assistir ao concerto de um ídolo de tão perto, sem ter de o partilhar? Ou a sensação de vazio por não haver ali ninguém com quem trocar um olhar, um sorriso feliz?
Às vezes eu tinha de me obrigar a sair do quarto. Era fácil e cómodo deixar-me ficar naquele perfeito quadrado soalheiro, com a árvore frondosa do lado de fora da janela sempre a lembrar-me a minha casa no Porto.
Numa tarde de sábado, desci Manhattan até à Strand. Nada como vários andares de livros para me servirem de cenoura. Lembro-me de, pelo caminho, comprar o American Pastoral a um vendedor de rua, o Zack das barbas brancas. Também trouxe o A Room of One’s Own, da Virginia Woolf – sempre apreciei a ironia do acaso.
De regresso a casa, decidi que sairia do metro na Columbus Circle, para ir buscar o jantar. Quando me sinto mais sozinha, preciso dos meus hábitos, dos meus rituais de conforto, de aconchego. O meu ritual solitário, em Nova Iorque, passava muito pelo mac and cheese com molho de cranberry dentro da embalagem de cartão do Whole Foods.
Dentro da carruagem, reparei numa miúda de uns 20 anos que trazia os olhos marejados. Vínhamos as duas de pé, a talvez um metro de distância uma da outra. Esperei que olhasse para mim e perguntei, sem um som sequer, se ela estava okay. Ela fez um esforço para sorrir, disse que sim com a cabeça. Agradeceu. Eu sorri de volta. Mantive-me atenta. Assim que surgiu um lugar sentado mesmo à minha frente, perguntei se ela quereria sentar-se. Esboçou um sorriso de novo, disse que não. Mantive-me de pé. Quando chegámos à estação de Columbus Circle, eu aproximei-me da porta – fiquei aliviada quando ela me seguiu. Parei, olhei-a da forma menos intrusiva que consegui e perguntei, agora de viva voz, se ela precisava de alguma coisa. Respondeu-me chorando. Explicou que tinha acabado de sair de casa do namorado, que tinham terminado a relação, que era melhor assim. Perguntei-lhe se queria um abraço. Ela não hesitou. “Não deves ser nova-iorquina,” pensei. Mantivemo-nos as duas na plataforma, com gente a desviar-se de nós, de um lado e do outro, como formigas apressadas, enquanto ela chorava aconchegada no meu peito. Depois, respirou fundo, deu um passo para trás, e sorriu. Eu ainda lhe disse uma ou duas baboseiras sobre como dali a uns tempos ia seguramente sentir que aquela separação fora uma coisa boa, que outras portas mais luminosas se abririam. Disse-lhe que foi assim comigo, é assim com toda a gente, time after time. Agradeceu-me, chamou-me anjo da guarda.
Respondi-lhe que aquele abraço tinha sido o ponto alto da minha semana.
*
Se eu não vivesse sozinha, não poderia acordar devagar, muito devagar.
Se eu não vivesse sozinha, não saberia exatamente o que vou encontrar dentro do frigorífico.
Se eu não vivesse sozinha, não poderia usufruir do silêncio.
Se eu não vivesse sozinha, não poderia ficar a ler até às cinco da manhã na cama.
Se eu não vivesse sozinha, não poderia pendurar quadros ou mudar móveis de sítio ou fazer o jantar conforme me apetece.
Se eu não vivesse sozinha, não sentiria aquela mistura perfeita de pavor e fascínio quando troveja.
Se eu não vivesse sozinha, não poderia ter os livros espalhados pelas mesas e cadeiras e sofás e móveis – e pelo chão.
Se eu não vivesse sozinha, não poderia tomar duches demasiado longos.
Se eu não vivesse sozinha, não saberia nunca onde anda a tesoura.
Se eu não vivesse sozinha, não poderia deixar acumular a louça por lavar na banca.
Se eu não vivesse sozinha, não deixaria de ser sozinha.
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Um moço pergunta-me que problema é que eu tenho. Tu és gira, pareces inteligente… Se estás sozinha, é porque deves ter algum problema.
Ignoro o paternalismo bacoco e lembro-me de ter lido que as pessoas solteiras foram durante muito tempo vistas como “doentes, imorais ou neuróticas”.
Penso na quantidade de mulheres que vivem relações desequilibradas ou ocas ou frias ou solitárias ou violentas – e que são vistas como “doentes, imorais ou neuróticas”, também.
Penso na minha avó Maria, que se casou aos 32 anos, contrariando gerações e gerações de mulheres que, com essa idade, já tinham meia dúzia de filhos de roda das saias. Nunca aprendeu a ler nem a escrever. Não sei por que motivo se casou a minha avó Maria. Não sei quantas vezes terá ouvido alguém dizer-lhe que devia ter algum problema para não ser ainda casada, tão tarde.
Sei que se casou numa altura em que a mulher existia para ter filhos e ser a criada da família. Devia, então: educar as várias crianças, cuidar da casa, preparar as refeições, tratar da roupa, trabalhar na terra, cuidar dos animais, às vezes levar pancada, e ao domingo, na missa, parecer satisfeita com a sua vida.
A mulher devia obediência ao marido. A mulher não podia ter uma profissão ou viajar sem a autorização do marido. A mulher não podia votar. A desigualdade estava escrita na lei. Quando eu nasci, a lei tinha mudado há pouco. A mentalidade das pessoas ainda não. Mas eu, neta de duas avós analfabetas, pude estudar e ganhar a minha própria vida.
Penso em todas essas mulheres que fizeram com que fosse possível eu ter direito à solidão.
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Ao longo do ano em que vivi em Nova Iorque, saí com seis ou sete homens. Entre monumentais erros de casting e gente divertida, mas com pouco ou nenhum interesse em conversar, aproximei-me de dois deles. O Bruce foi o primeiro.
Depois de muitos museus, de muitas caminhadas pela cidade, depois dos diners com as melhores panquecas de banana com bacon e maple syrup, depois das noitadas em speakeasies, piano bars e pizza corners na Bleecker Street, depois de várias sessões de cinema com pipocas encharcadas em manteiga líquida, o Bruce começou a afastar-se. Deixou de responder a mensagens, faltou a dois encontros sem avisar. Irritada, deixei de o procurar. Não que estivesse perdidamente apaixonada, mas tinha acreditado que éramos realmente bons a acompanhar a solidão um do outro. A nossa ligação terminou sem uma conversa, sem uma palavra.
Só passado algum tempo entendi que, sem me dar conta, ele me tinha levado – pela mão – a criar uma ligação mais profunda com a cidade. Era ela, a cidade, que, afinal, me fazia companhia.
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Aos sábados de manhã, a minha mãe ia à feira. Trazia ovos e peixe e hortaliça e um ou outro par de meias.
Eu era pequena, de passo curto e olhos muito atentos. Imagino que fizesse muitas perguntas, pelo caminho; demasiadas, tendo em conta todas quantas tenho por responder ainda hoje.
Depressa percebi que atrasava a vida da minha mãe, sempre a correr, sempre atarefada, como todas as mulheres trabalhadoras que, no início dos anos 80, carregavam como exclusivamente suas as responsabilidades por todas as compras, todas as limpezas, todas as arrumações, todas as refeições. E pelo cuidar dos filhos.
“Não tens medo de ficar sozinha, pois não? Se te portares bem, a mãe traz-te um livrinho.”
As pequenas histórias que me trazia giravam à volta de figuras maldosas que acabavam invariavelmente castigadas e dos bonzinhos que viveriam felizes para sempre com um cavalo branco por perto.
Devagar, devagarinho, completei a coleção dos sessenta livrinhos da Formiguinha.
*
Passo a trabalhar na mesa de jantar.
Trago livros, portáteis, dicionários, um candeeiro de mesa, a cadeira rotativa. E as canetas, os lápis, cadernos e auscultadores. E a manta para as pernas. Todo um aparato.
Não tinha de ser assim. Há um escritório em casa, num quarto virado para as traseiras, com vista sobre uma serra e com os meus dicionários e prontuários e enciclopédias. O tanto que vejo da minha secretária, o tanto que me fez escolher esta casa de entre dezenas que visitei, passou a ser, depois da pandemia e do isolamento e da solidão forçada, apenas um retângulo verde e azul e estéril, tão estéril como o vidro que me separa do mundo. Não se vê uma casa, um parque de estacionamento, uma zona industrial nas traseiras. Não se veem pessoas. Veem-se árvores, uma serra coberta delas. E o céu, uma imensidão de céu onde, sinto, podemos facilmente afogar-nos.
Ao fim de alguns dias de confinamento a trabalhar no escritório, decido passar a usar a mesa de jantar da sala, no lado oposto da casa, de onde vejo pessoas a qualquer hora do dia ou da noite. Há sempre um carro que passa, alguém que conduz para algum lado, com palavras e ideias e histórias na cabeça. Há sempre gente a caminhar: o senhor de cabelos brancos e boné castanho que passa, devagarinho, todos os dias depois das duas da tarde; ou o senhor que conduz uma espécie de triciclo com uma grande cesta quadrada atrás – quase aposto que foi ele que construiu aquela geringonça; ou a senhora de cabelo grisalho e sorriso jovial que caminha diariamente de braço dado com o seu filho de quase dois metros de altura – e que é a cara dela!; ou o casal de cerca de setenta anos que prefere andar, bem juntinho e espreitando as varandas alheias, ao final da tarde; ou o vizinho do prédio ao lado que teima em passear o cão sem trela; ou o senhor do opel corsa preto, gordinho, de bigode, que vem recolher monos que por vezes deixam junto aos contentores; ou as três amigas que descem a estrada sempre com coletes refletores e sempre em animada cavaqueira – tão animada, que, se a varanda estiver aberta, consigo ouvir as suas gargalhadas enquanto trabalho sozinha na minha mesa de jantar.
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