Após11 anos ininterruptos, publicamos o último Fingimento com poemas de um grande nome da literatura de língua portuguesa, Ana Miranda. A seção de inéditos fica suspensa por tempo indeterminado. Só eventualmente poderá haver novas publicações.
Nossos agradecimentos a todos os curadores que equilibraram com maestria neste espaço nomes consolidados com estreantes que vieram a se firmar mais tarde no panorama literário do Brasil e Portugal: Luiz Ruffato, Moacir Amâncio, Manuel Alberto Valente, Carlos Henrique Schroeder, Mirna Queiroz e, em especial, Heloisa Jahn, responsável pela seção nos últimos 5 anos. Agradecemos também todos os autores que generosamente aqui publicaram.
Flor do cerrado
Para Nicolas Behr
Vochysia rufa qualquer
roupala brasiliensis
palavras de brinquedo
nas entrelinhas do chão
nas estradinhas do cedo
rodamoinho vermelho
carregada pelo avesso
voltando para o começo
bem cedo e sem medo
brinquedo memora nodosa
seja tarde, seja cedo
sem medo, mas bem cedo
no cerro, no vermelho
pubescens cor de palha
inflorescência do nervo
Sem medo do segundo
ou do terceiro mundo
um vulcãozinho indo
profundo, fundo, mimosa
fantasia flor nikelia
fimbriata cristalinae
siparuna cuyabana
no coração de húmus índia
Ainda, ainda, ainda
florindo numa bromélia
finda uma índia caindo
numa lua sem ter dívida
sem rediviva ideia de fim,
que foi sempre assim
indo florindo e ardendo
vermelha terra da erva
fulva, densa e sedosa
tumbérgia.
Polymorpha florida na taça
da ira, da fúria e ardor
do vício de uma altura
daquela palmeira mais rubra
noreantea adamantium
do passado meu carmim
nunca passado dali
Que a tarde seja cedo
e cedo seja o começo
e o dia seja cerrado
myrcia rubella ou torta
em si e por seu fim
sem fim e por seu campo
em flor, quase sem fim
momento que a vida corta
semente nascendo errado
(Como as pernas do Garrincha
e as árvores do cerrado)
agosto de 2012
Dieji, luz da Lua
Todos dormem
Se há escuridão, não há luar
Não há ruídos
Como se todos
Sapos, cavalos, cães e vento
Te esperassem.
Às vezes vens.
E tu vens num sopro quente
E me cercas, te aproximas
Me encostas, te ajoelhas
E deitas no meu leito
de oceano
E assim num silencioso naufrágio
Tu te tornas um manto de delícias
De delícias de delícias...
Ondas poderosas vão e vêm
O meu corpo se abala, se distende
Se arrepia
ao toque de tua mão imaginária
que leva a mão carnal à fonte
à flor
à pequena flor que incendeia
todo o corpo, todo o ser, todo o mundo
E o gesto em desespero se comove
se angustia, árduo, obsessivo
até que o corpo chegue a alguma ilha
uma talvez montanha de delírios
lírios
talvez uma explosão adamantina
quem sabe mais do que três flechas
que demoram em se fincar
que resistem a se apagar
naquele céu de anjos e de cores
De delícias de delícias de delícias...
E depois, tudo depois é um perfume
é um olor de rosa feminina
e nada mais existe ou existiu
que o rastro desse cheiro tão profundo
perfume como um filtro de magia
que nos joga num mar calmo e revolto
das delícias de delícias de delícias
da tua lembrança corporal
E o todo se torna extremidade
no rumo de um corpo inexistente
que é verdade, que é verdade,
que é verdade.
setembro de 2016
Abraço
Não sei quem eu sou
nem sei o que vejo
e o mundo
é um percevejo
Não sei quem eu sou
nem sei o que me mata
e o mundo
é uma barata
Não sei quem perdi
em troca de uma obra
e o mundo
é uma cobra
Nem sei onde estou
nem sei a cidade
nem sei quem eu sou
nem sei minha idade
Não sei quem eu fui
nem sei o que sonho
tudo se dilui
o mundo é maldade
Mundo maravilha
sonhos esparsos
céu, mar e ilha
trêmulos passos
rumo a mim mesma
perdida em espaços
encontrada e erma
em sonhados braços.
dezembro de 2016