I.
"Os antigos invocavam as Musas" — eis uma proposição, um juízo, que temos todas as razões para considerar verdadeiro. Qualquer enciclopédia de filologia clássica deve referir esta verdade sobre os Antigos, quer a formule exactamente nestes termos, quer o faça noutros. E, contudo, “Os antigos invocavam as Musas” não é realmente uma proposição verdadeira tirada de uma enciclopédia de filologia clássica, mas sim o título e o primeiro verso de um poema de Fernando Pessoa ou, mais propriamente, do seu heterónimo Álvaro de Campos. Pensar a diferença entre “os antigos invocavam as Musas” como proposição da ciência filológica e “Os antigos invocavam as Musas” como verso de um poema de Pessoa é certamente difícil. Talvez essa diferença seja a mesma, ou pelo menos do mesmo tipo, que a diferença entre um urinol que exista numa casa-de-banho pública e o urinol de Duchamp assinado “R. Mutt”, intitulado “Fountain” e colocado num museu. Em todo o caso, a diferença entre a proposição e o verso obriga a pensar na arte tal como ela existe entre nós, seres humanos, desde que há poesia — desde muito antes de existir o ready-made — e, sobretudo, convoca imediatamente a necessidade de se pensar a relação entre a arte e a verdade. Na obra de Nietzsche, a interrogação acerca da arte é sempre indissociável da interrogação acerca da verdade, e essa indissociabilidade advém de ser fundamental para Nietzsche pensar o valor relativo da arte e da verdade — se a arte vale mais do que a verdade, ou a verdade mais do que a arte. No que respeita à arte, a questão fundamental para Nietzsche não é tanto a natureza da arte quanto aquilo a que o próprio chama “o valor da arte”, tal como no que respeita à verdade a questão fundamental é “o valor da verdade”, não o conceito de verdade.
Mas, antes de procurarmos fazer sentido da pergunta pelo valor de uma e outra, é fundamental começar por sublinhar que, para Nietzsche, ambas são “valores”, e que, se quisermos compreender a diferença entre uma proposição e um verso no quadro de uma reflexão sobre o pensamento de Nietzsche, a primeira coisa que devemos fazer é tentar compreender de que modo se manifestam e predominam na proposição e no verso valores diferentes. A proposição “os antigos invocavam as Musas” poderia figurar numa enciclopédia de filologia clássica por três ordens de razões: primeiro, porque pode ser verdadeira ou falsa (tem um determinado “valor de verdade”, como se diz na Lógica), depois porque é verdadeira (o seu “valor de verdade” é ser verdadeira) e, por fim, porque na filologia clássica, como em todas as ciências, o que importa, o que vale é o que é verdadeiro. Na ciência, trata-se de procurar o verdadeiro e descartar o falso; a ciência implica uma valorização incondicional da verdade; a ciência é, por excelência, o domínio em que se manifesta aquilo a que Nietzsche chama a “vontade de verdade” — uma vontade que faz que o “ser-verdadeiro” não seja apenas uma propriedade de determinadas proposições, mas também um valor, isto é, o objecto de um determinado tipo de vontade.
Por outro lado, o que importa, o que vale no verso de Pessoa, “Os antigos invocavam as Musas”, não é o seu valor de verdade. Se lemos o verso como verso, o que nos importa nele é, por exemplo, o seu ritmo, a sua musicalidade, bem como, em geral, a sua capacidade de gerar em nós (se não isoladamente, pelo menos no quadro do poema a que pertence) um determinado tipo de comoção: o “prazer estético”. Segundo Kant, este prazer será “puro” se resultar exclusivamente da apreciação da forma daquilo que o suscita — neste caso, a forma do verso. A beleza “livre” é um sentimento de prazer que advém de reflectirmos sobre uma forma sensível sem fazermos dela qualquer conceito, sem atendermos a questões de utilidade ou de moralidade, e sem avançarmos um palmo no conhecimento da verdade sobre o objecto que tem essa forma. Segundo esta concepção da arte, o “valor estético” do verso de Pessoa, “Os antigos invocavam as Musas”, é absolutamente autónomo do “valor de verdade” da proposição enciclopédica, “os antigos invocavam as Musas”. (Esta concepção de uma arte absolutamente autónoma está muito longe de esgotar o que Kant tem a dizer sobre o domínio estético e, em particular, sobre a poesia. Por outro lado, talvez esta seja, por excelência, a concepção moderna da arte).
Porém, o modo como Nietzsche entende a relação entre o valor da arte e o valor da verdade não é compatível com esta concepção de uma absoluta autonomia da arte. Nietzsche combate frequentemente tal concepção, designando-a como a concepção de “l’art pour l’art”. Esta concepção tem o mérito de excluir da arte a utilidade e a moralidade, mas mesmo assim deve ser rejeitada, segundo Nietzsche, por não compreender que a arte “serve a vida”, a arte é “o grande estimulante da vida” (cf. Crepúsculo dos ídolos, Expedições 24). Além disso, quando atendemos ao modo como Nietzsche, no seu último ano de vida lúcida, reflecte sobre a sua primeira obra, O nascimento da tragédia, e procura pensar a forma como, já aí, julgou dever compreender a relação entre o valor da arte e o valor da verdade, dificilmente podemos deixar de verificar que Nietzsche não aparta a arte e a verdade como se fossem dois valores pertencentes a esferas absolutamente autónomas uma da outra. Em duas notas de 1888, Nietzsche declara “que a arte tem mais valor do que a verdade” (NL 1888, 14[21], 17[3]), e sugere que é este o verdadeiro sentido da “profissão de fé”, do “evangelho de artista” exposto no Nascimento da tragédia. O que Nietzsche escrevera sobre “a arte como a autêntica tarefa da vida, a arte como actividade metafísica” no Prefácio original da obra (o Prefácio dedicado a Richard Wagner) significa, na realidade, que “a arte tem mais valor do que a verdade”. Ora, na segunda dessas duas notas póstumas, Nietzsche escreve o seguinte:
“— que a arte tem mais valor do que a verdade. No Prefácio, no qual convida Richard Wagner como que para um diálogo, aparece a profissão de fé, o evangelho de artista: ‘a arte como a autêntica tarefa da vida, a arte como actividade metafísica’...
[...]
Pode ver-se que, neste livro, o pessimismo, ou mais claramente: o niilismo, passa por ser a verdade [als die Wahrheit gilt]. Mas a verdade não passa por ser o padrão de valor mais elevado, menos ainda o poder mais elevado (NL 1888, 17[3]).
O “evangelho de artista” do Nascimento da tragédia valoriza a perspectiva da arte, colocando-a acima da verdade, afirmando o seu valor como um valor superior ao valor da verdade, mas isso não significa que professe indiferença em relação à verdade, ou uma rejeição liminar da verdade, uma absoluta negação do seu valor, uma erradicação da “vontade” que nos faz ver valor nela (a “vontade de verdade”, já mencionada acima). Esse evangelho reconhece uma verdade: a verdade do pessimismo “ou mais claramente: o niilismo” (NL 1888, 17[3]). Nietzsche não dispensa a verdade, nomeadamente a verdade pessimista-niilista que atribui à “existência”, isto é, ao mundo, à totalidade do que existe, um “carácter terrível [furchtbaren] e problemático [fragwürdigen]” (NL 1888, 17[3]). Portanto, na obra de Nietzsche, a valorização da arte em detrimento da verdade não é, de modo algum, uma forma de escapismo. Não se trata de olhar para o belo com o fito de evitar olhar para a “terrível verdade” do pessimismo ou do niilismo. Pelo contrário, aquela que é para Nietzsche a arte por excelência, a arte trágica, implica um confronto com essa terrível verdade. Não pode haver tragédia se o artista trágico não se expuser ao “lado terrível e problemático da existência” — isto é, se não se confrontar com a falta de um propósito ou sentido último para o sofrimento humano, com a circunstância de a vida não ser justa e “sacrificar os seus tipos mais elevados” (Crepúsculo dos ídolos, Antigos 5), bem como com o carácter “enigmático” ou “problemático” de isso ser assim. Não há arte trágica, em suma, sem a experiência da totalidade do que existe como “devir” e “caos” e, portanto, sem a pergunta pelo “valor da existência” (Gaia Ciência 357) — a pergunta que faz ver que falta à “existência”, à totalidade do que existe, uma finalidade e, por isso, um valor e um sentido. A arte trágica como arte “dionisíaca” implica a experiência pessimista desta falta de finalidade, sentido e valor. Quando Nietzsche escreve, por exemplo, que “a verdade é feia: temos a arte para não perecermos às mãos da verdade” (NL 1888, 16[40]), ou quando escreve que a consequência de uma absoluta honestidade intelectual (Redlichkeit) seria “a náusea e o suicídio” e que só através da arte, enquanto “culto da inverdade”, nos salvamos dessa consequência (Gaia Ciência 107), não se trata, para ele, de defender uma perspectiva que, simplesmente, dispensasse a verdade e abraçasse o escape da fruição estética, o esquecer-se de si na contemplação da forma bela ou no êxtase e na embriaguez dionisíacas. E o mesmo, sublinhe-se, vale também para a comédia, a outra face da arte dionisíaca: ela é uma “descarga artística da náusea do absurdo”, ou seja, de algo como uma exteriorização e libertação catártica de tal náusea. Esta descarga é “artística” — e não, por assim dizer, uma mera explosão fisiológica (como uma mera gargalhada ou um espirro) —, pois gera uma obra de arte, o que significa que dá forma à náusea que é exteriorizada e libertada, tornando-a contemplável e acessível ao prazer estético. Mas, além disso, o facto de ela pressupor o sentimento do absurdo implica que também ela dependa de uma relação não-cancelada, não dissolvida com a verdade do niilismo, ou seja: que também nela o niilismo “passe por ser a verdade” (NL 1888, 17[3]).
Martin Heidegger viu na declaração “a arte tem mais valor do que a verdade” a chave para a interpretação da filosofia da arte de Nietzsche, bem como, mais genericamente, para a definição do papel e da relevância de Nietzsche na história do pensamento ocidental. Por isso defendeu que, para Nietzsche, a arte é de facto um valor necessário, porém não o valor mais elevado. Segundo Heidegger, a valorização da arte em detrimento da verdade na obra de Nietzsche é um momento-chave da história do Ocidente que não pode ser compreendido se não se atender ao facto de se tratar nele de uma inversão do platonismo, nomeadamente uma inversão do valor relativo atribuído por Platão à arte (ou ao belo) e à verdade na República e, em especial, no Fedro. Mas, nesta inversão, não se trata de negar um termo e afirmar o outro, e sim de inverter, numa tábua em que se hierarquizam valores, a subordinação de um termo ao outro. O que Nietzsche faz é subordinar a verdade à arte, enquanto Platão havia subordinado, na tábua de valores mais influente de toda a história do Ocidente, a arte à verdade — e, assim, pensado a verdade como valor supremo e incondicional.
Porém, o sentido da subordinação da verdade à arte na obra de Nietzsche é particularmente difícil de compreender. Como vimos, a verdade que é subordinada é uma verdade “pessimista” e “niilista” — e, contudo, a tese de Nietzsche é a de que a subordinação desta verdade à arte (e na arte) produz uma “afirmação da vida”, a qual é, por natureza, “anti-pessimista” e “anti-niilista”. O nascimento da tragédia, escreve Nietzsche na primeira nota póstuma em que afirma que “a arte vale mais do que a verdade”, é um livro “anti-pessimista: nomeadamente no sentido em que ensina algo que é mais forte do que o pessimismo, mais divino do que a ‘verdade’: a arte” (NL 1888, 14[21]). E, na segunda nota, escreve também que, já no Nascimento da tragédia, procurou pensar “a arte como a única contra-força superior oposta a todo o tipo de vontade de negação da vida, a arte como o que é anti-cristão, anti-budista, anti-niilista por excelência” (NL 1888, 17[3]). Como exactamente pode a afirmação anti-niilista da arte subordinar — sem descartar ou negar — uma verdade niilista? Como se conciliam e hierarquizam, na tábua de valores do “evangelho de artista” de Nietzsche, o “grande estimulante da vida” e o “niilismo”, ou seja, a arte e a verdade?
E, não esquecendo o ponto por onde começámos: poderia uma tal subordinação contribuir para o esclarecimento da diferença entre a proposição “os antigos invocavam as Musas” e o verso de Pessoa “Os antigos invocavam as Musas”? De que modo?
II.
Voltemos precisamente a esse ponto inicial: a relação entre a proposição e o verso.
A proposição descreve um determinado estado-de-coisas. Este estado-de-coisas ocorreu no passado, entre os Gregos e os Romanos. Sabemos que a proposição é verdadeira porque sabemos que esse estado-de-coisas de facto ocorreu entre os Gregos e os Romanos; temos inúmeras provas de que “os antigos invocavam as Musas”. A proposição é verdadeira (é esse o seu “valor de verdade”) porque descreve adequadamente o estado-de-coisas a que se reporta. A verdade da proposição é esta adequação ou correspondência entre o que é dito nela e as coisas que são reais, a célebre adaequatio intellectus et rei. Ora, o ponto decisivo talvez seja este: o que a proposição descreve é um estado-de-coisas intra-mundano, isto é, um estado-de-coisas que pertence a um determinado mundo, o mundo dos Antigos, o mundo dos Gregos e dos Romanos. Porém, o verso de Pessoa é diferente. O verso de Pessoa, ao contrário da proposição, não descreve um estado-de-coisas intra-mundano, mas antes reflecte sobre o mundo a que esse estado-de-coisas pertence e, assim, evoca esse mundo: evoca o mundo dos Antigos, o mundo em que acontecia que as Musas eram invocadas quando se compunham versos. Esse mundo era um mundo diferente do nosso. No nosso mundo moderno, não há Musas. Vemos que assim é, e vemos, pelos menos, uma parte do que isso significa, quando, justamente, contrastamos o mundo dos Gregos e dos Romanos com o nosso mundo moderno — o mundo em que havia Musas com o mundo em que já não há Musas. É isso que faz o poema de Pessoa:
Os antigos invocavam as Musas.
Nós invocamo-nos a nós mesmos.
Não sei se as Musas apareciam —
Seria sem dúvida conforme o invocado e a invocação. —
Mas sei que nós não aparecemos.
A diferença entre a proposição e o verso está longe de se esgotar no facto de este último convocar uma apreciação da sua musicalidade e de outras propriedades consideradas formais. O verso é, por assim dizer, reflexivo: pensa o que a proposição apenas descreve. Há uma parte da Tabacaria que faz a mesma reflexão, e que talvez torne ainda mais claro que esse pensar característico dos versos de Pessoa é indissociável da capacidade que eles têm de evocar mundos (não para descrever factos desses mundos):
Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou Patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais
Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Obviamente, não se trata aqui de uma verdade factual sobre um sucessão de épocas históricas. E, contudo, também se trata da “verdade” — embora talvez de outro tipo de “verdade”. Poder-se-á dizer que se trata de uma verdade sobre algo como a “essência” da modernidade, a “essência” do nosso mundo como mundo diferente do mundo dos Gregos, do mundo dos Romanos, do mundo dos trovadores medievais, do mundo das marquesas do século dezoito e do mundo das cocotes do século dezanove? Talvez não seja inadequado falar de “essência”, pelo menos no sentido em que a verdade em causa não diz respeito a factos particulares, estados-de-coisas determinados cuja ocorrência real pudesse ser verificada com provas. A verdade aqui em causa é tão pouco sobre tais factos que dificilmente pode ser errado dizer-se que ela diz respeito muito mais a um “como” do que a um “que” — muito mais ao modo como as coisas eram em certos mundos e ao modo como são no nosso do que àquilo de particular que tenha de facto ocorrido nesses mundos e ocorra de facto no nosso. A verdade dos versos de Pessoa parecer dizer respeito à “mundaneidade do mundo”, não às particularidades intra-mundanas dos mundos neles referidos.
Vendo bem, essa verdade não será precisamente a (suposta) verdade do niilismo, uma verdade que dá expressão ao “sentimento de ausência de valor” que resulta da “morte de Deus”? Não se trata aí afinal, do resultado de ter colapsado, no mundo moderno, o modo como o Ocidente, desde o seu início, criou os seus valores — pensando-os como uma finalidade que daria sentido e unidade à totalidade de tudo o que existe, como uma finalidade que o Cristianismo veio a pensar expressamente como transcendente e estabelecida por um deus único, mas que agora, na modernidade, é uma finalidade que deixa de poder ser reconhecida como “real”, “verdadeira”? Não será, portanto, que se trata nos versos de Pessoa deste colapso que deixou o homem moderno — e nos deixa ainda hoje — perante o nada, o nihil do niilismo, a impossibilidade de crermos em alguma finalidade, unidade ou realidade, inclusive de a criarmos a partir de nós mesmos, como um valor que déssemos a nós próprios e ao mundo num novo acto de “transvaloração” ou “criação de valores” (Meu coração é um balde despejado. / Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco / A mim mesmo e não encontro nada)?
Que algo como “a verdade do niilismo” seja um tema fundamental na obra de Pessoa, não deve suscitar muitas dúvidas. O que não é claro, porém, é o que significa aqui o termo “verdade”. O que significa este termo quando Nietzsche escreve, como vimos, que no Nascimento da tragédia “o niilismo passa por ser a verdade”, ou “o niilismo vale como sendo a verdade” (als die Wahrheit gilt, NL 1888, 17[3])? Que tipo de “verdade” é esta, que diz respeito à história dos valores no Ocidente — à história de certos valores, bem como a certas “categorias da razão” (Vernunft-Kategorien) como “finalidade”, “unidade”, “ser” —, e que, na sua versão mais extrema (a do “niilismo extremo”, como Nietzsche lhe chama), acaba por incluir a verdade de que “não há verdade” (NL 1887, 9[35]), de que, não se podendo atribuir “ser” a qualquer um dos nossos valores mais elevados, então “nada é verdadeiro, tudo é permitido” (Assim falava Zaratustra IV A sombra, Genealogia da Moral III 24)? O sentido, mas também o estatuto de uma tal “verdade” é tanto mais problemático quanto, segundo se escreveu acima, tal verdade não diz respeito a factos que possam ser comprovados, mas sim à “essência” do nosso mundo, a algo como a “mundaneidade” do mundo. Será uma verdade reflexiva? Uma verdade poética? Será, como escreveu Jorge de Sena — justamente a propósito de Nietzsche e Pessoa — “aquela verdade que é visão” (cf. “O poeta é um fingidor (Nietzsche, Pessoa e outras coisas)”)?
Mas esta não é a única pergunta que se levanta. A capacidade de evocar e fazer pensar sobre algo como a “mundaneidade do mundo” será realmente uma característica de toda a arte? Não será antes uma idiossincrasia da poesia de Fernando Pessoa, ou pelo menos uma característica de certo tipo de poeta, não de toda a poesia, e muito menos de toda a arte?
Se considerarmos os poemas da Antiguidade Clássica em que as Musas são invocadas, encontramos a mesma capacidade da poesia de evocar mundos e fazer pensar sobre a mundaneidade do mundo. Espreitemos um exemplo: o final da Lisístrata de Aristófanes. Os cidadãos atenienses, reconhecendo-se incapazes de resistir à carência sexual celebremente imposta pelas mulheres da peça com o fito de os forçar a terminar a guerra no Peloponeso e fazer a paz com os Espartanos, invocam as Graças, Artemisa, Dioniso, Zeus e Hera como testemunhas da “Paz benévola/ Que a deusa Afrodite compôs” (Ἡσυχίας πέρι τῆς ἀγανόφρονος/ ἣν ἐποίησε θεὰ Κύπρις, vv. 1289-90); os Espartanos, por seu turno, invocam uma “Musa ... espartana” (Μῶα ... Λάκαινα, v. 1298), bem como Apolo, Atena e os Dióscuros, e assim celebram a mesma paz “cantando um hino a Esparta” (Σπάρταν ὑμνίωμες, v. 1305), no qual fazem a seguinte evocação:
E como potros as raparigas,
Nas margens do Eurotas,
Saltam forte com os pés
E levantam pó,
E agitam as melenas como as Bacantes,
E brandem o tirso, e brincam dançando
(ᾇ τε πῶλοι ταὶ κόραι / πὰρ τὸν Εὐρωταν / ἀμπάλλοντι πυκνὰ ποδοῖν / ἀγκονίωαι, / ταὶ δὲ κόμαι σείονθ᾽ ᾇπερ Βακχᾶν / θυρσαδδωᾶν καὶ παιδδωᾶν, vv. 1308-1313).
Nunca poderemos apreciar, mesmo sabendo Grego Antigo, a forma destes versos (o seu ritmo, todos os aspectos da sua musicalidade, etc) como os coevos de Aristófanes, e por mais que procuremos recriar a Comédia Antiga como espectáculo, nunca poderemos fazer mais do que uma pálida ideia do que ela era. Mas não deixa por isso de ser certo que não entendemos os versos de Aristófanes como proposições verdadeiras ou falsas, e que uma boa tradução terá de tentar recriar algo da força poética do original. No trecho citado, esta força passa pela imagem dos potros e pela típica capacidade dos poetas gregos de evocarem o todo através da parte (neste caso, um todo evocado pelas melenas, o tirso e o brincar que é um dançar, ou o dançar que é um brincar — παιδδωᾶν, v. 1313). Mas, para Aristófanes e os seus co-cidadãos, estes versos, como toda a peça a que pertencem, faziam parte do culto que prestavam ao deus Dioniso durante os festivais que lhe eram dedicados (as Leneias e as Grandes Dionísias), e o sabermos isso é talvez meio caminho andado para vermos que a força poética aqui em causa é, em boa parte, uma força reflexiva: um fazer pensar sobre o modo como o humano se relacionava com o divino num determinado mundo. A paz que resultou das acções de Lisístrata foi afinal composta, “feita” por Afrodite (ἣν ἐποίησε θεὰ Κύπρις, v. 1290), e agora, no final da peça, tudo culmina não apenas naquela evocação de um coro de Bacantes nas margens do Eurotes — portanto, na invocação de Dioniso —, mas também numa invocação de Atena que é, na verdade, uma exortação à dança e ao canto, portanto uma afirmação do dionisíaco (vv. 1314-21). Nos versos de Aristófanes, está em causa a verdade sobre a relação dos humanos com os deuses — e esta verdade é pensada em termos que erguem perante os olhos da nossa imaginação o mundo em que o dionisíaco era uma das formas possíveis dessa relação.
Os versos de Aristófanes iluminam esse mundo, de certa forma colocam-nos nele. No Nascimento da tragédia, Nietzsche usa para o mesmo efeito a 9ª Sinfonia de Beethoven e o hino À alegria (An die Freude) de Schiller. Pede-nos que imaginemos o hino transformado numa pintura e pensemos nos “milhões de seres frementes esponjando-se no pó” como uma imagem da experiência grega do dionisíaco: “agora o escravo é homem livre, agora rompem-se todas as rígidas e hostis delimitações que a necessidade, a arbitrariedade ou a ‘moda impudente’ estabeleceram entre os homens” (NT 1). O poema de Schiller funde-se com As Bacantes de Eurípides: “Assim como agora os animais falam e a terra dá leite e mel, do interior do homem também soa algo de sobrenatural: ele sente-se como um deus, ele próprio caminha agora tão extasiado e enlevado, como vira em sonho os deuses caminharem. O homem já não é artista, tornou-se obra de arte: a força artística de toda a natureza, para a deliciosa satisfação do Uno-primordial, revela-se aqui sob o frémito da embriaguez” (NT 1). Por fim, o “Criador” do último verso do poema original já não é o Deus dos Cristãos, mas sim Dioniso: "Vós vos prosternais, milhões de seres? Pressentes tu o Criador, ó mundo?" (NT 1).
III.
No Nascimento da tragédia, o niilismo (ainda não designado assim, mas pensado como “o absurdo da existência”) passa, de facto, por ser a verdade, ou “o niilismo vale como sendo a verdade” (NL 1888, 17[3]). Nietzsche vê a arte dionisíaca como uma arte que “na sua embriaguez dizia a verdade” (NT 4). Mas a verdade é o absurdo da existência. O que gera a experiência do dionisíaco no humano é um olhar que vê esta “horrenda verdade” (NT 7), um olhar que tem uma intuição dessa verdade ao penetrar “no interior e no horrível da natureza” (NT 9), e que, ao fazê-lo, vê a “verdade da natureza” (NT 8, KSA 1.58), “a verdade dionisíaca” (NT 10). Por isso, a sabedoria humana é idêntica à terrível sabedoria dionisíaca de Sileno (“o melhor de tudo para ti [i.e. para os humanos] é inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é morrer em breve”, NT 3), a sabedoria que corresponde ao “conhecimento trágico”. Este não é nada senão o conhecimento do absurdo da existência, isto é, da falta de propósito ou finalidade da totalidade do que existe. A tragédia é, assim, a “domesticação artística do horrível” (NT 7): a tragédia salva da letargia e da náusea porque é uma obra de arte que permite contemplar a verdade dionisíaca à distância, isto é, porque, enquanto obra de arte, dá forma ao conhecimento trágico e, com isso, gera a possibilidade da distanciação estética — a possibilidade paradoxal de experimentar a dissolução da forma através da contemplação da forma. Talvez a formulação mais clara desta idea-chave seja a que encontramos no §3 do texto die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo), escrito dois anos antes da publicação do Nascimento da tragédia:
“Fuga da verdade, poder adorá-la como se à distância, coberta por nuvens! Reconciliação com a realidade, porque ela é enigmática! Aversão à decifração de enigmas, porque nós não somos deuses! Jubilante prostrar-se no pó, paz de espírito na infelicidade!” (VD 3, KSA 1.570)
Este pequeno excerto formula a ideia de uma “fuga da verdade” que não é realmente uma “fuga da verdade”, mas sim uma forma de intuir a verdade e até adorá-la à distância. Além disso, sublinha outro ponto que é muito importante na “visão dionisíaca do mundo” expressa no Nascimento da tragédia: o acesso à “verdade dionisíaca” é, ao mesmo tempo, a experiência dessa verdade como um “enigma”, ou, dito de outro modo, é a experiência do mundo como uma realidade intrinsecamente misteriosa (cf. NT 15, NT 18). A falta de um propósito último faz da vida, e portanto do mundo, uma realidade incompreensível — “algo inteiramente obscuro” (KGW 1/4, 62[47]), como Nietzsche escreve já em 1868.
Na inversão dionisíaca-nietzschiana do platonismo, a verdade não é eliminada, ela é até adorada, mas “à distância, coberta por nuvens” (VD 3). Na arte dionisíaca, quer quando ela é arte trágica quer quando é comédia,, o humano vai “além da beleza” e, contudo, “não busca a verdade” (VD 3). Aquilo a que aspira é, antes, “a aparência (Schein)”, mas a aparência não é senão o filtro que, por um lado, cobre, por outro permite vislumbrar a verdade — e assim adorá-la “coberta por nuvens” (VD 3).
Mas há um último ponto que devemos considerar nesta brevíssima reflexão sobre a arte e a verdade no pensamento de Nietzsche. A obra de Nietzsche diz que, através da arte, é possível a contemplação distanciada e, dada esta distância, até a adoração da terrível verdade do niilismo, mas a obra de Nietzsche também mostra que é assim. A escrita de Nietzsche é ela própria arte, não mero pensamento abstracto: a sua forma é artística, suscita a contemplação de si mesma enquanto forma, e é nesses termos — nos termos da distância e da contemplação estética da forma — que ela faz ver o lado terrível e problemático do existência, a verdade do niilismo. Mas essa forma tem uma dimensão performativa. Já no Nascimento da tragédia, Nietzsche deixa suficientemente claro que a embriaguez dionisíaca não é uma condição meramente reflexiva ou contemplativa: ela requer o sair-fora-de-si do actor, e o seu espírito é o da música, i.e. da interpretação (ou performance) musical (cf. NT 8 etc). A escrita de Nietzsche é dionisíaca justamente porque é a escrita de um actor e de um compositor. Para pensarmos em Nietzsche como actor, só temos de pensar, a título de exemplo, em Ecce homo como autobiografia ficcionada — na qual, logo de início, Nietzsche declara que não é Alemão, mas sim Polaco, e na qual admite escrever com a máscara do bufão. Para pensarmos em Nietzsche como compositor, podemos pensar, por exemplo, no aforismo de Para além do bem e do mal em que ele elogia o presto e o alegrissimo de Aristófanes, Petrónio e Maquiavel. A escrita destes três “espíritos livres” tem um andamento musical (um tempo) que não pode ser traduzido para Alemão: o metabolismo dos Alemães é demasiado lento para aquele presto e alegrissimo e, além disso, “o bufão e o sátiro” são “estranhos ao corpo à consciência” dos Alemães (BM 28). E, contudo, a contradição performativa deste aforismo é óbvia: pois este aforismo não diz, mas mostra que Nietzsche é um escritor-actor alemão a cujo corpo e consciência o bufão e o sátiro não são estranhos e, sobretudo, um escritor-compositor que sabe usar o presto e o allegrissimo como só um Aristófanes, um Petrónio ou um Maquiavel. Mas, de acordo com o que já vimos, a questão não é apenas a forma do texto não ser meramente a forma de um objecto de contemplação ou reflexão e ter, além disso, uma dimensão performativa. Mesmo quando, à superfície, o texto de Nietzsche parece um mero alegrissimo desligado da verdade, não deixa de ser movido, nas profundezas, por uma vontade de verdade subordinada à vontade de aparência — i.e., à arte e, através dela, à afirmação da vida. Nesta subordinação, a escrita nietzschiana serve a vida servindo a reflexão sobre a “civilização” (Kultur), quer dizer: sobre as tábuas de valores de todas as culturas humanas e, acima de tudo, da cultura moderna, a era da “morte de Deus” e do “niilismo mais extremo”. Por isso, o que está sempre em jogo no texto nietzschiano é, de facto, algo como a “mundaneidade do mundo”, entendida como uma estrutura valorativa na qual o valor atribuído à arte e o valor atribuído à verdade têm sempre um papel preponderante. Mas compreender que assim é — ler Nietzsche deste modo, como um escritor-actor-compositor dionisíaco em cuja escrita (quer quando é cómica, quer quando é trágica) se trata sempre de uma subordinação da verdade à arte em termos que permitam ao leitor adorar, à distância, a terrível verdade do niilismo sem deixar, por isso, de afirmar a vida — é provavelmente um esforço semelhante ao de pensar a diferença entre “os antigos invocavam as Musas” como proposição da ciência filológica e “Os antigos invocavam as Musas” como verso de um poema de Pessoa. E, se esse é um esforço difícil, devemos talvez lembrar-nos justamente do tempo em que ainda se invocavam as Musas — e Platão escrevia, no final do seu Hípias (maior), que são difíceis as coisas belas.