Genebra, 1 de setembro de 2021
Estimada Juliana,
Escrevo-te enquanto noto, a cada fim de dia, que o verão europeu se aproxima de seu adeus temporário. Nesses meses de um calor sufocante, sentimos também o vento da liberdade em nossos rostos. As medidas de restrição – tão necessárias – foram flexibilizadas. As fronteiras foram reabertas, pelo menos para alguns. Nada voltou ao normal. Talvez nunca mais voltará. Mas certa memória da autonomia de nossos corpos foi restabelecida no comando de nossas ações.
O verão termina com praticamente todos nós, adultos, vacinados pela Europa. Um acontecimento praticamente inédito na ciência por sua velocidade. A pandemia não acabou. Ainda vemos mais de 4 milhões de novos casos por semana pelo mundo. Mas as mortes dão sinais de queda nos países onde a prioridade foi salvar vidas.
É justamente esse sentimento de reencontro com a liberdade que me deixa indignado. Não por ela ter sido recuperada. Mas por ela ter fronteira, ter nacionalidade, ter cor. O mundo, em pleno século 21, repetiu sua eterna história de injustiça, privilégios e egoísmo.
Indignação também por vermos que, do outro lado do oceano, essa não é a realidade do nosso país, o Brasil.
Com ampla experiência em vacinas, com uma rede de imunização que serve de exemplo ao mundo, com cientistas de ponta e com gente disposta a ir às profundezas do país para distribuir doses, nós ainda vemos, sentimos e cheiramos a morte. Nada disso era inevitável.
Mas essa não é uma carta-denúncia contra um governo. Nem um desabafo enviado a você, em Roma. Escrevo-te para pedir ajuda em encontrar caminhos, uma obsessão minha neste momento.
Temo que, conforme nossas asas vão reacostumando a voar, a amnésia coletiva volte a se instalar. Claro, a vida é espetacular. Voltar a dançar, viajar, se abraçar, se aglomerar por uma partida de futebol ou qualquer outra desculpa representa uma sedução do espírito incapaz de ser freada. E nem deve.
Mas e se isso tudo colocar uma sombra conveniente sobre o que ocorreu nesses últimos dois anos? E se optarmos por, deliberadamente, só tocar a vida? Locais que atravessaram genocídios e atrocidades já viram esse fenômeno ocorrer. Nada disso é novo. E por isso me preocupa.
Num mundo de poucos, não foi o vírus que venceu. Mas a ganância. A ganância da China por não ser afetada em seu percurso para se consolidar como a superpotência do século 21. A ganância dos nacionalistas que esvaziaram as prateleiras de vacinas e deixaram grande parte do mundo em desespero. A ganância da corrupção para furar a fila do oxigênio. E a ganância de se recusar a abrir mão da patente de vacinas, um monopólio mantido nas mãos de poucos para um produto que deveria ter sido declarado como um bem público universal.
No Brasil, a ganância de populistas que mentiram para suas populações – e mataram - para permanecer no poder foi um dos capítulos mais amargos de nossa história repleta de crimes e injustiças.
No fundo, a pandemia foi uma história da ganância, da competição e da sobrevivência do mais forte. E por isso a resposta fracassou.
Mas, ironicamente, há um aspecto da pandemia que pode mudar de uma maneira decisiva a vida de nossos filhos Gael, Anita, Pol e Marc nos desafios que enfrentarão nas próximas décadas. E ele veio em forma de perguntas:
E se for a cooperação que garante a sobrevivência da espécie, e não a competição? Como explicar que tantos “líderes fortes” desmoronaram durante a crise? O ser mais forte é, de fato, resultado apenas de suas ações individuais? O que garante a segurança de uma sociedade, sua arma individual ou um sistema coletivo de saúde?
Enfim, e se os intérpretes de Charles Darwin estivessem errados?
Naquele momento, a tese da adaptação do viajante mais ilustre do Beagle foi alvo de uma forte influência de Adam Smith e da ideia de que a ordem na sociedade e seu avanço viria da concorrência entre indivíduos. Não por acaso, não foram poucos os que não perderam tempo para fazer uma tradução livre e equivocada de sua teoria para o capitalismo.
Hoje, estudos começam a apontar de uma forma cada vez mais convincente que a sobrevivência numa floresta não depende da lei do mais forte. Mas de cooperação, de troca, de negociação, de reciprocidade e de solidariedade, inclusive entre diferentes espécies. Para alguns, o que realmente marca uma floresta não é a concorrência. Mas a interdependência.
Juliana, ao meu ver, a pandemia é, em parte, uma constatação dessa realidade. Quando eu descubro que a vida daqueles que eu amo depende de eu garantir que a vacina chegue ao meu adversário, é no fundo um paradigma que está sendo em parte enterrado. Quando existe a constatação de que um povo apenas vai sobreviver se o vizinho for protegido, não há como argumentar que a lei do mais forte é a que define a humanidade.
Olhando ao que ocorre no Brasil, mais especificamente, considero que chegamos a um limite. O luto que precisamos fazer é como sociedade, justamente para erguer algo novo. Sem um luto coletivo, a atual crise civilizatória vai voltar para nos assombrar. Sem um luto consciente, os espíritos daqueles que se foram nos cobrarão e, no futuro, livros de história vão constatar: aquela geração fracassou.
Uma sociedade brasileira que não for fincada na convicção de que terá de garantir o direito dos demais jamais completará a construção de sua democracia. A cooperação, e não a competição, é o que assegurará a paz social.
A pandemia provavelmente é um dos últimos alertas claros de que o atual modelo é insustentável. Para o Brasil e para o mundo. A crise climática – que já faz mais refugiados que guerras – será o verdadeiro desafio do século 21, com repercussões reais para a democracia, o tecido social e a mera sobrevivência.
E, para enfrentá-la, teremos de construir as respostas a partir de uma nova base. Aquela que herdamos está esgotada.
Aguardando tuas reflexões sobre essa reinvenção do futuro, desejo a você as duas melhores armas que eu encontrei para atravessar esse momento: amizades sólidas e indignação.
Saudações genebrinas.
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Para ler a carta de Juliana Monteiro a Jamil Chade, clique aqui.