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Precisamos impedir que se criem as condições para a barbárie

Foto: Joanna Kosinska



2021-10-02

Ao Brasil, com amor: uma troca mensal de cartas entre dois “estrangeiros” que nos levará até meados de 2022. Jamil Chade (em Genebra) e Juliana Monteiro (em Roma) compartilharão suas reflexões sobre o que será e quem seremos nesse momento de revolução. São cartas digitais. Mas os sentimentos, angústias e buscas são tão reais quanto seus próprios sonhos.

 

Roma, 2 de outubro de 2021 

 

Querido Jamil, 

 

Há semanas quero te falar de um brasileiro que não me sai da cabeça. Reginaldo é negro, tem 50 anos e mora em São Paulo. Na fotografia que ilustra o depoimento, aparece uniformizado de azul, dentro de uma cova, com a enxada nas mãos. É seu trabalho, enterra quem já morreu. Embaixo da imagem, podemos ler a breve autobiografia que já é um epitáfio: “Não realizei sonho nenhum. Só comi e vivi”. 

Há muito, Jamil, não leio nada tão triste. 

Ali, pelo fim do segundo mês de lockdown, estive muito angustiada. Para além do luto, do medo, do confinamento e da incerteza, me doía um tipo de lucidez de hospício, de quem anuncia como extraordinário o comezinho que todos estão cansados de ver. Sabe aquelas ilusões de ótica em que olhamos um quadrado monocromático por alguns segundos até que – ecco! - conseguimos ver, perfeitamente, um leão ou um urso? E não entendemos como era possível não enxergar o contorno e a fúria tão óbvios agora? Isolada, com minha família, de repente, vi que todos - até eu! até meus filhos! - iríamos morrer. E agora, mesmo quando tento me alienar no monocromático do dia, não posso evitar um tipo de incontinência existencial, que não é nostalgia do vivido, não há tempo para isso, mas desejo por tudo que ainda pode caber, da vida, no tempo que supostamente me resta. Sei que outros sentiram-se assim, mas, até saber de Reginaldo, não tinha pensado nessa angústia como privilégio de classe. 

Ele recebe 997 reais por mês, não faltou um dia de serviço, passa a pandemia no cemitério onde mal notou aumento no movimento porque é bairro de bacana, de quem pode se cuidar. Um enterro chega a custar 50 mil reais. Se pudesse reduzir ainda mais suas necessidades e deixasse, finalmente, de comer, passaria, com sorte, quatro anos abrindo sepulturas para juntar esse valor. Ele é pobre. Lenha para queimar em um sistema que ora usa, ora descarta pessoas como se fossem coisas e lhes tira tanto, até que não reste sequer imaginação sem a qual não se pode nem sofrer direito. 

Adorno escreveu que onde o espírito do mundo está em crise, as pessoas são incapazes de desempenhar seu próprio tamanho, ficam aquém de si mesmas. Se os afetos cultivados na sociedade são determinantes do que ela será capaz de criar, deveria ser preocupação do Estado que Reginaldo não possa sonhar. As elites deveriam ocupar-se dos sonhos de Reginaldo se querem um país próspero para seus próprios filhos. 

Em outro texto, Educação após Auschwitz, Adorno defende que estudemos diligentemente os responsáveis pelo holocausto para que possamos reconhecer as condições que transformam pessoas pouco amantes e mal amadas – sim, é preciso um bom déficit de amor - em assassinos, mas, adverte, “em nenhuma hipótese poder-se-ia aplicar qualquer procedimento semelhante a seus próprios métodos para aprender como eles se tornaram do jeito que são”. Esse entendimento é uma preciosidade delicada. Não nos tornar, nem mesmo anistiados pelas mais nobres intenções, reprodutores do ódio, mas reciclá-lo em uma educação cuja premissa de que Auschwitz não se repita seja a primeira de todas as exigências, como anota o alemão logo na abertura do ensaio. Impedir que se criem as condições para a barbárie. Precisamos desse compromisso no Brasil pós-bolsonaro que, oxalá, há de insurgir. 

Ontem, enquanto caminhava com meus filhos pelo centro histórico sujo demais para a cidade-fim de todos os caminhos, voltei a pensar em Reginaldo. Numa ruazinha estreita, no meio da confusão de Roma, uma pessoa também revolveu o chão, mas, dessa vez, fez um canteirinho. Alguém teve a esperança de cercar uma esquina com as pedras soltas do caminho e ali plantar quatro ou cinco espécies discretas, presas a varetas para dar-lhes intenção e estima, organizadas com ternura, vê-se. Não são plantas de comer, nem de curar, de modo que a função desse canteirinho surpreendente é das mais altivas: ser beleza no caminho. 

Nada sei do jardineiro romano, mas, para plantar um canteiro no meio da rua, é preciso imaginação. Essa que me dói, porque seca, nas palavras do homem que só enterra, sem ver nada crescer. Talvez por isso não possa tirá-lo da cabeça. Nenhuma das minhas metáforas pobres deram conta da literalidade perturbadora da imagem: de dentro do buraco, um homem preto, brasileiro, nos encara e diz que apenas come, cava e espera o dia de morrer. 

Toda a filosofia e outras ciências mais exatas, como a poesia, dedicaram-se ao tema da finitude e, mesmo assim, privilegiados, como eu, eventualmente se deparam, aos 40 e poucos anos, com o horror de que vão morrer. Gosto de uma provocação feita por Lacan numa conferência, em Louvain, em1972, onde diz que a morte entra no domínio da fé́. “Vocês têm razão de crer que vão morrer, certamente; isso vos dá forças. Se vocês não cressem, poderiam suportar a vida que têm? Se não estivessem solidamente apoiados sobre a certeza de que isto terminará, poderiam suportar esta história?” Desconfio que Reginaldo enlouqueceria, não conseguiria cavar mais um único punhado sem a certeza de que aquilo terá fim. Eu queria que, de todos nós, no fim, não dissessem “descansou”, mas, “ah, que pena, gostava tanto”. 

A morte não é a única certeza. Antes dela, a vida, onde estamos instalados, que se gasta imperdoavelmente se abandonamos, baldias, as esquinas. 

Mande notícias. Conte-me alguma coisa bonita. Você, que conhece tantas, diga o que tem visto nas esquinas por aí. 

Para terminar, te deixo um poema de Mário Cesariny. Tem apenas um verso, simples, imperativo e misterioso como as verdades: “Ama como a estrada começa”. 

E considera, com ênfase, os canteirinhos do caminho. Não furaram o asfalto, como a flor de Drummond, que não é tempo de milagres espontâneos, mas foram plantados nele, ao lado do container, do nojo e do lixo. Nossa esperança, Jamil, é que ninguém, por mais indiferente, poderá dobrar a esquina sem tropeçar neles. 

 

Com carinho, 

Juliana

 

Para ler a carta de Jamil Chade a Juliana Monteiro, clique aqui



Juliana Monteiro

É jornalista e escritora, tem dois filhos e mora em Roma.




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