Lisboa, 4 de dezembro de 2021
Querido Jamil,
Escrevo de um café lisboeta. Faz frio, mas o dia é lindo. O sol do outono parece tentar compensar o calor hipotético com uma luz soberba sobre a capital do país que nos legou a língua em que você me lê. Na bolsa tenho documentos que me identificam para fins de direitos e polícia. Um passaporte brasileiro, outro português, uma identidade italiana. Uso cada um de acordo com a conveniência e a fronteira. Em Portugal, embora o livrinho de capa vermelha dê fé de que sou portuguesa, preciso explicar o acento, dizer do avô que desembarcou no Brasil no início do século passado e nunca mais voltou. Em Roma, justifico meu permesso di soggiorno com o visto de missão das Nações Unidas, marido funcionário internacional, filha romana quando preciso apelar. Quase me desculpo. Na Europa, sinto-me usurpadora de identidades que não me identificam.
No Brasil, não explico nada, pertencimento soli e sanguinis, sou dele e ele é meu. Nenhum governo ou polícia, nenhum banimento ou despatriamento tem poder de revogar minha identidade brasileira, mesmo que possa, em tempos brutos, cassar minha cidadania. Porque lá sou filha e neta, fui aluna de tia Ailma e atleta do Minas. Lá ainda está de pé o muro onde ganhei a cicatriz no joelho e, no beco onde dei meu primeiro beijo, talvez ainda exista o tapete de jamelões que manchava nossas roupas quando jogávamos bete. Sobretudo, a língua. A língua em que nos contaram e nos ensinaram a contar as coisas.
Quase oito anos na Europa e continuo obstinadamente estrangeira. Tenho medo de, adaptada, faltar o desejo de voltar. Uma resistência em ceder a certa ordem europeia e me abrandar. Ou talvez seja o conhecimento próprio da palavra saudade. Um amigo italiano que viveu no Brasil me contou que, depois de aprender a saudade, nunca mais deixou de senti-la.
Outro dia tive medo de que meus filhos não compreendam a goiabada e o imperativo de comê-la com queijo. Eles não compreendem que farofa é sempre bom e são indiferentes aos nossos salgadinhos de festa. Eu estranho a forma como articulam a letra “r” e tenho medo de que não possam pronunciar o til que separa a “nau” do “não” e passem recibo de gringo sempre que falarem a palavra “coração”. Da mesma forma, para eles, eu sou a mãe estrangeira. Não podem me contar sem o Brasil. Eles bancam a identidade italiana como eu jamais poderia, talvez porque já tenham deixado suficiente sangue dos joelhos nas calçadas dessa língua.
Li que, em 1937, o ditador dominicano Rafael Leônidas Trujillo utilizou um sarrafo linguístico para identificar e eliminar os haitianos que cruzavam a fronteira em busca de dias melhores. O suspeito era obrigado a falar a palavra perejil (salsinha) e, se a pronúncia agarrasse no “r” francês ou denunciasse falta de intimidade com o “j” daquela parte da ilha, a permanência era negada. Parece que morreram assim, de sotaque, entre 15 e 20 mil pessoas. Língua materna é coisa séria, indisfarçável, não só constituinte, mas estrutural de todos nós.
Cultivar, em português, o texto e a música é minha maneira de resistir a certo silêncio que tem o exílio e de manter acesa uma lembrança de mim inalcançável em outro idioma. Posso, por exemplo, ser amável em qualquer registro, mas, se tiver que dizer “não”, é melhor que seja em português. Tenho uma dureza que só expresso na língua de minha mãe. Talvez a melhor definição de “pátria” seja mesmo a que Pessoa atribuiu à língua portuguesa. E talvez a estrangeiria agudize a embaraço de que somos, uns para os outros, sempre, resultado de uma tradução. Você sabe, Jamil, não basta conhecer o significado das palavras para chegar ao sentido, e a exatidão não apenas deforma a poesia como lhe rouba a alma. Com gente e poema é preciso sentir o ritmo e a pulsação da intenção que precede a palavra. Em vez de uma hermenêutica, uma erótica, como escreveu Susan Sontag sobre a crítica de arte.
Uma vez, viajando pela Síria, nosso carro quebrou no caminho até Hama. Fomos acolhidos na casa de uma família enorme, homens, mulheres e muitas crianças. Não entendo uma palavra de árabe, no entanto, entendi quais daquelas crianças eram filhas e netas de cada uma das mulheres. Também soube dos bebês que a mais velha havia perdido e a vi chorar, ainda, os filhos que não vingaram. Eu não tinha filhos nem árabe para dizer sequer um “sinto muito” e, por isso, a abracei. Fiquei comovida com desassombro com que ela recebeu meu sem jeito. Depois me ensinou a fazer o pão, explicou sobre o hijab, arrumou uma linda shayla azul nos meus cabelos e me levou num quarto pequenino, de pé direito baixo, enfumaçado de incensos, tapetes, almofadas. Lembro que entrei insegura, sem saber a liturgia de um espaço como aquele, e esse tipo de ignorância já me rendeu problemas do Marrocos ao Laos. Mas as mulheres apenas entraram atrás de mim, umas cinco ou seis crianças, um bebê, e sentaram naquela penumbra perfumada. Um alérgico não suportaria dois minutos antes de ir a óbito, mas passei uma boa hora ali, me sentindo linda com aquele lenço turquesa no cabelo, mais do que escutando, sentindo elas conversarem comigo, e juro que gargalhei com algumas histórias a respeito das quais meu entendimento é da ordem do sobrenatural. Tudo isso sem a palavra. Pensei que, no fim das contas, todos somos só gente. De perto, temos mais semelhanças que diferenças. A falta das palavras permitiu um encontro que, talvez, o mal entendido inevitável da linguagem pudesse levar ao conflito.
Um mês depois começou a guerra.
O terrível mal entendido da guerra.
A tradução capciosa, do outro, na guerra.
Dia desses, por conta de um episódio de discriminação no colégio, conversava com meus filhos sobre xenofobia. Explicava que a palavra remetia ao medo do estrangeiro, um medo que deslizava, perigosamente, para o ódio. Contei que, para muitos povos, o estrangeiro não passava de um bárbaro e que, durante toda a antiguidade, na maior parte do mundo, matar o outro, o que vinha de fora, não era sequer crime. Conversava com Gael quando a pequena, que parecia distraída, encerrou a questão com “que besteira. Todo mundo é estrangeiro em algum lugar.”
Foi também Anita que disse se sentir mezzo italiana, mezzo brasileira porque “tem coisas que não sei falar em português e tem coisas que não sei falar em italiano”. Achei tão preciso e tão bonito, sobretudo porque ela usou, para situar-se, não o que sabe, mas o que não sabe dizer. Acho que é mesmo assim. Estrangeiro é todo lugar ou ser humano que não nos sabe, que nos julga sempre idênticos a nós.
O que me diz, Jamil?
Você, que é estrangeiro entre estrangeiros há tanto tempo. Todo deslocamento é exílio? Como te parece a estrangeiria daí, do seu posto de observação, onde as nações se dizem unidas? Direito de solo, direito de sangue, direito de língua? Que tipo de estrangeiro é você?
Charles Baudelaire diz, num poema, que o estrangeiro não ama nem pai, nem mãe, nem amigos, nem o ouro; ignora a latitude da pátria e apenas “amaria” a beleza, no futuro do pretérito. No fim, quando insiste em saber o que ama o extraordinário estrangeiro, ele apenas responde:
“Eu amo as nuvens… as nuvens que passam lá longe… as maravilhosas nuvens!”
Da próxima vez que eu voltar a te escrever, querido amigo, será 2022 e teremos sobrevivido ao segundo ano da pandemia. Eu te desejo coragem para preservar o coração, não importa se exilado ou estrangeiro, no lugar certo. É uma alegria e uma esperança, uma honra e um carinho compartir a perplexidade e o encanto desses tempos com você, em português, do nosso Brasil.
Um beijo,
Juliana
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