Genebra, 5 de dezembro de 2021
Querida Juliana,
Tuas cartas não são meras correspondências. São poemas. E, como correspondente há mais de duas décadas, me coloco diante do poder de tuas palavras em mais uma posição de estrangeiro. Desta vez, literária. Incapaz de rimar, compenso o silêncio das páginas em branco com fatos incontestáveis ou com óbvios “estou com saudades”. Sem conseguir transformar versos em arte, respondo tua carta na condição de forasteiro.
Como você, sou neto de imigrantes e tenho filhos imigrantes. Estrangeiro? Todas as vezes que abro os olhos pela manhã, num gesto que inaugura o amanhã, o futuro.
Sou brasileiro, com nome e sangue libanês e presbiteriano. Não falo árabe porque a família que chegou ao interior de São Paulo para plantar café tinha uma só meta: integrar-se. Ser brasileiro, uma ficção como qualquer outra nacionalidade.
Quase um século depois, um dos meus filhos nasceu num hospital suíço. O outro, numa clínica na França. A mãe é catalã e espanhola, e a ordem depende de quem está à mesa. Os meninos usam os idiomas como ferramentas e o mais velho começou, neste ano, suas aulinhas de chinês. Decoram os nomes dos planetas para a prova de ciência em inglês, pedalam suas bicicletas em francês e cantam Gil, Chico, Paralamas e Jair Rodrigues em português. Mas descobri que o termo “língua materna” não tem esse nome por acaso: eles sonham em espanhol.
Para ir à escola, cruzam uma fronteira terrestre. Uma pedra com um símbolo da Suíça me faz pensar, todas as manhãs, sobre o significado de soberania.
Tenho meu escritório, em Genebra, num prédio que é uma ficção jurídica estabelecida a partir da burocratização de um projeto de utopia, as Nações Unidas. A lojinha do tax free está lá para provar isso. Afinal, o que são fronteiras senão uma definição de onde pagamos nossos impostos? Impostores ultranacionalistas não enxergam os símbolos nacionais dessa forma, eu sei. Mas talvez tenhamos outras cartas para falar desse fenômeno da apropriação, muitas vezes, indevida.
Juliana, essa longa introdução para minha resposta a tua carta só me serve para chegar a um ponto: não troco uma caixa de Bis por nenhum chocolate sofisticado da Suíça. O motivo é tão simples quanto lógico: trata-se do sabor de minha infância, aquela etapa da vida onde começamos a desenhar nossas referências.
Sinto-me apenas brasileiro, só posso votar para presidente no Brasil e tenho apenas um passaporte, o nosso. Mas, diante dos meus filhos e minha realidade, cresce em mim a indignação de sermos qualificados apenas de uma forma rasa a partir da nacionalidade, um conceito que sequer existia há poucos séculos.
Confesso que não pensava assim antes da dupla de herdeiros das hipotecas ter nascido. Por algum tempo, me perguntava: para que time meus filhos torcerão numa Copa do Mundo? França, Brasil, Espanha ou Suíça? Onde eles chamarão de casa? Onde se sentirão “amigos do rei”?
Mas, depois de mais de 20 anos morando no exterior, essas minhas angústias começaram a perder força e acredito que me reconciliei com essa cacofonia de identidades. Também entendi, ao me deparar com tantas pessoas que buscavam, no exílio, proteção, uma frase que escutava de amigos do meu pai e que pertenciam a diferentes colônias de imigrantes de São Paulo: “nunca rejeite um passaporte, você nunca sabe o que teu país pode fazer contra você um dia”.
Antes e enquanto meus filhos cresciam, eu viajei muito. Foram mais de 70 países. E o que mais me impressionou não foi a diversidade do mundo. Mas nossa semelhança. Todos nós sonhamos, choramos, rimos exatamente da mesma forma. Todos desejamos a felicidade de nossos filhos e uma boa música para dançar com quem amamos. Todos precisam dar as mãos para lidar com medos e incertezas.
Na rota de refugiados, uma imagem surreal me abalou. Era um trilho de trem abandonado, usado pelos estrangeiros para percorrer o trecho entre a Sérvia e a Hungria. Eles, que saíram da Síria, estavam a caminho da Alemanha. Seriam semanas de trajeto. Numa cadeira de rodas, uma senhora muito idosa era levada por jovens, crianças e adultos, que se alternavam. Em cada espigão, o solavanco da cadeira virada de costas ao destino marcava o ritmo lento da viagem. Quando aquelas pessoas se deram conta de que eu estava atônito diante da cena, um deles parou, sorriu e soltou uma só palavra: “family”.
Quem não entenderia isso?
Numa outra rota de imigrantes, pedi para tirar uma foto de um pai que carregava, nos ombros, sua filha. Exaustos, com as roupas rasgadas e destruídos, ambos eram o retrato do que Zygmunt Bauman dizia sobre os refugiados que trazem “os ruídos da guerra distante e o fedor de lares pilhados e aldeias incendiadas”.
A mãe, que estava distante, ao me ver apontando a câmera, soltou um enorme berro e entendi que deveria abaixar a máquina. Ela se aproximou, tirou um lenço imundo do bolso e limpou o nariz da garota. Ao terminar, olhou para mim e me fez entender que, agora sim, eu poderia retratar a filha dela.
Quem não entenderia o conceito de dignidade?
Quando Yuri Gagarin, em 1961, se transformou no primeiro homem a entrar em órbita, levava consigo o sonho e a loucura de séculos. Quando retornou, confessou que sua maior surpresa não foi ver a vastidão do universo, mas a beleza do planeta. Estava apaixonado pela Terra.
Ele não foi o único a entender que, ainda que sua missão fosse desbravar o cosmo, a maior descoberta que estava fazendo era de nossa própria casa, do “errante navegante”. Com base nos relatos dos astronautas, anos mais tarde, o filósofo Frank White cunharia o termo “overview effect”, uma reflexão sobre a visão do mundo de uma posição privilegiada e única.
Não estou sugerindo o fim do Estado-nação, nem evocando John Lennon. Mas será que não existe nada maior? Será que nossa lealdade se limita a uma bandeira e a uma vida organizada na base de identidades construídas? O nacionalismo é mesmo o instrumento adequado?
Será que nossa maior defesa como espécie é a fronteira? Ou seria ela nossa limitação?
Talvez o vírus invisível tenha nos dado uma última chance de despertar. Não para borrar nossas identidades. Mas como último alerta antes de enfrentar um desafio existencial que nos é apresentado no século XXI. Se Gagarin foi ao espaço para entender que somos um só, agora é o confinamento, o medo, o reconhecimento da vulnerabilidade que nos proporcionam um daqueles momentos históricos de mudança cognitiva da consciência.
Quais dos problemas atuais serão resolvidos dentro de fronteiras ou a partir da divisão entre nós e eles? Entre estrangeiros e locais?
Clima, terrorismo, narcotráfico, fluxo imigratório, vírus, a imoral desigualdade na distribuição de vacinas. Todos eles debocham do que chamamos de identidade nacional ou fronteiras. Todos eles exigirão uma nova forma de pensar e de agir.
Você perguntou como era esse debate sobre ser estrangeiro numa cidade marcada pela presença da ONU.
O que posso te dizer é que assisto, quase diariamente e ao vivo, como delegações afirmam tomar a palavra em reuniões e cúpulas para defender seus respectivos interesses nacionais. E todos os dias me pergunto: serão mesmo “nacionais”? Ou a nacionalidade é usada como escudo para a defesa do interesse de uma elite no poder, de um grupo exportador de soja ou de um ditador de plantão?
Querida vizinha, como você percebeu, devolvi tua carta-sinfonia com mais perguntas que respostas. Mas acho que, neste momento, precisamos começar a repensar nosso mundo a partir de questionamentos. Ainda me surpreende como, num mundo repleto de incertezas, haja tanta gente repleta de certezas.
Da fria Suíça, te mando um abraço e um apelo para que convença a luz de Portugal a também nos beneficiar, aqui, nos Alpes. Eu costumo dizer que Lisboa é a melhor cidade da Europa e uma das mais incríveis do Brasil. Coma um pastel de nata por mim e, se me permite a sugestão, recomendo que você passe por um local mágico onde os europeus descobrem o chôro, aquela música composta de tantas influências estrangeiras que se tornou uma marca de um país. Tenho lindas memórias daquele cenário.
Se eu não falar com você até o final do ano, aproveito essa correspondência para te agradecer profundamente por ter passado parte da pandemia ao meu lado em 2021, mesmo que do outro lado das fronteiras. A gratidão é a memória do coração, já diziam.
Desejo a você um 2022 repleto de amor, resiliência e, claro, de poesia em forma de cartas. Será um ano decisivo e precisaremos de tua força, com o passaporte que você optar por apresentar.
Saudações genebrinas,
Jamil
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Para ler a carta de Juliana Monteiro a Jamil Chade, clique aqui.