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"Estamos perdendo"



2022-03-14

Ao Brasil, com amor: uma troca mensal de cartas entre dois “estrangeiros” que nos levará até meados de 2022. Jamil Chade (em Genebra) e Juliana Monteiro (em Roma) compartilharão suas reflexões sobre o que será e quem seremos nesse momento de revolução. São cartas digitais. Mas os sentimentos, angústias e buscas são tão reais quanto seus próprios sonhos.

 

Roma, 14 de março de 2022

 

Querido Jamil,

 

Há uns dois anos, Anita pediu que eu indicasse, entre suas várias criações de Lego, a minha preferida. Escolhi uma bem alta, enfeitada de flores e colunas romanas. Ela concordou que era a mais bonita e, então, decidiu que aquela seria a mais barata de sua loja. Achei curioso e fiz uma pergunta tola, irrefletida: “por que a mais bonita é a mais barata?”. E a menininha de cinco anos respondeu, por óbvio, “porque assim todos podem ter”.

Algumas vezes tive que explicar, com a pouca vontade que sentimos diante do dilema de enganar ou desenganar os filhos, por que nem todos podem ter. Já tive que falar sobre sexo e sobre morte. Com desassombro e um pouco de delicadeza, não é complicado encontrar o tom. Mas desafino quando tento explicar a sociedade em que eles estão crescendo. Não posso ser resignada, não posso ser desesperada, não quero ser hipócrita.

É difícil encontrar uma voz que se preste a dizer do nosso mundo, corrompido por uma lógica que suporta a indecência do desperdício diante do olhar dos miseráveis e não se escandaliza em manter patentes de medicamentos nem durante uma pandemia dramática como a da Covid-19. Que a despeito de sua vocação, talento ou desejo, eles só serão cidadãos, com supostos plenos direitos, se, antes, forem consumidores. Esse é o passaporte para a vida digna que eles – e a Declaração Universal dos Direitos Humanos – consideram uma prerrogativa da espécie.

Talvez a evidente contradição entre os valores que ensino como justos e aqueles que regem o sistema tenha culpa na minha falta de jeito. Termino constrangida porque, assim como ontem, amanhã vou acordar operadora e operária do empreendimento que denuncio. Tolerando o que defini como intolerável. As crianças não são bobas. No final, seus olhos não perdoam, “e aí?”. Eu digo que amanhã tem aula, que eles precisam dormir e tento não me lembrar que quando a prefeitura instalou blocos de concreto embaixo do viaduto para que os pobres não pudessem sequer dormir protegidos da chuva, só um homem se comoveu. E foi lá tirar. Um só.

Nosso modelo é produtor de injustiças tão infames que é preciso consagrá-lo como um tipo de verdade, para que mesmo os que sofrem possam se alienar nele. O contraditório é desmoralizado, satanizado, esvaziado do seu conteúdo socioeconômico para virar, em mãos maliciosas, um espantalho com a cara de Stalin ou Mao, afugentando do campo das possibilidades qualquer lógica que não tenha como centro o acúmulo de capital. Desqualificar como delirante ou mal-intencionado, antes que se instaure o debate, a ideia de comunitário, é assim que roubam nossa alma e nos persuadem de que não há outro mundo possível.

Eu, tão maledicente do status quo, me escutei aludindo à minha filha, que ela poderia lucrar mais aumentando o preço do artigo mais cobiçado de sua loja, que foi a surpresa embutida na pergunta que fiz. Não espanta que sejamos capazes de introjetar conceitos tão imperfeitos e sem charme como “tempo é dinheiro” e nos rendamos a esse escambo sem refletir que o tempo não é nada menos que o assoalho onde encenamos a breve história da nossa existência. O sistema tem na pilhagem do nosso tempo um de seus componentes mais perversos. Ao reduzi-lo a dinheiro, destitui seu valor. Transforma o tempo “livre” em mercadoria. Às vezes, apenas um brinde. Produto à disposição dos consumidores, não dos cidadãos.

“Eu tenho direito a esse tempo. Esse tempo pertence a meus afetos. É para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela. Para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis. Isso é o tempo”, disse o mestre Antônio Candido. Você sabe, Jamil. Não é difícil aderir a esse ideal. A dissidência ocorre quando insistimos que, se o direito ao bem viver não é de todos, se transforma em um repugnante privilégio, de uns sobre os outros. Nessa hora, alguns me olham com comiseração, como se eu estivesse defendendo chafariz de vinho nas praças e chuva de mirtilos aos domingos e não algo tão concreto, alcançável e possível como justiça social.

Sabe aquela máxima que os reacionários gostam de repetir, de que um jovem que não seja socialista não tem coração e um adulto que assim permaneça não tem cabeça? Aos 20 anos eu enfrentava esse dito com a arrogância e bravura típicas. Depois dos 40, entendo que o que ele denuncia nos progressistas não é a ingenuidade, mas a insistência de incluir todos na conta. Já não somos escoteiros nessa luta, meu caro amigo, e se mantemos a revolta é porque aprendemos com Galeano que nossas utopias servem para nos manter caminhando. Caminhamos dez passos, elas correm dez. Às vezes, como agora, correm mais. Estamos perdendo. O cinismo dos que debandaram para o outro lado talvez seja uma tentativa de saída honrosa, onde a resignação e a perícia adquirida no jogo escondam a corrupção do espírito.

Desculpe se não posso lhe mandar notícias amenas desse fim de estação. Queria te contar dos carnavais que vi antes da Covid e sonhar com os que, oxalá, virão, mas aqui do lado começou outra guerra e a palavra escrita é a nossa trincheira. Tampouco posso falar da expectativa pela primavera quando nosso país se coloca em marcha, cada vez mais acelerada, na direção das piores deformidades do sistema. Não convém ignorar os sintomas mórbidos, como Gramsci chamou os eventos que sucedem quando o velho está morrendo e o novo não pode nascer.

No primeiro mês do ano, mataram, no Rio de Janeiro, de tanto bater, mais um homem negro, um imigrante congolês, empobrecido, que fugia da violência em seu país. Escapou de um território conflagrado e foi assassinado em outro, em um bairro “nobre”, repare na exatidão vergonhosa do termo, na Barra da Tijuca. O nome dele era Moise Kabagambe. O resto, o resíduo, o bagaço. O ser humano a quem o sistema só oferece exploração e morte. No Brasil, na África ou aqui, na civilizada Europa. O sistema é também estruturalmente racista e xenófobo. No dia do assassinato, seu primo foi filmado dizendo, aos prantos, que “o Brasil é uma mãe, segunda casa, como que vai matar um irmão trabalhando?”

Respondo: com pau, pedra, taco, soco, bala, fome, doença, negligência, abandono, política, com o que for. O Brasil nunca foi uma mãe. O Brasil é um senhor de escravos, branco, herdeiro imoral do que foi roubado ou arrancado sob a dor da chibata. O Brasil é o genitor que abandona, quando não mata, os que antes violentou. A ficção da mãe gentil serve para acobertar nossos crimes e perpetuar privilégios. Também os meus e os seus, Jamil. E os dos nossos filhos brancos. Nós somos os “sonsos essenciais”, como escreveu Clarice. Moise morreu sem atrapalhar o sábado: o quiosque permaneceu “funcionando normalmente”, o cadáver no fundo da cena. E a resposta do poder a essa selvageria foi oferecer à mãe o direito de trabalhar, ganhar seu pão, no lugar onde o filho foi assassinado a pauladas. Sua morte como propaganda e atrativo do novo empreendimento cultural. Isso é imoral de tantas formas.

Bertold Brecht escreveu que “não se pode levar a sério quem denuncia as brutalidades do fascismo, mas não combate o capitalismo. Estes não são contra as relações de produção que produzem a barbárie, apenas são contra a barbárie.”

Quero saber dos horizontes que você vê daí, para onde convergem tantos interesses do capital mais obscuro e perverso. Aqui, contei as esperanças desses dias difíceis e capturei ao menos uma. Ao perguntar sobre o país onde nasceu, Gael introduziu a questão com “mamãe, quando o Brasil foi invadido...” Eu senti um quentinho. Situar-se corretamente no passado parece um bom começo para a tarefa de inventar o futuro.

Eles terão que lutar mais e melhor do que temos sido capazes até agora. E talvez meu embaraço ao tentar explicar as desigualdades reflita certo constrangimento em reconhecer e insistir – recorro outra vez a Brecht – “que os bons foram derrotados porque eram fracos e não porque eram bons”. O problema não são nossas utopias, isso é preciso ter sempre em mente, porque, sem esse norte intransigente, o coração vacila.

 

Um beijo,

Juliana

 

Para ler a carta de Jamil Chade a Juliana Monteiro, clique aqui.



Juliana Monteiro

É jornalista e escritora, tem dois filhos e mora em Roma.




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