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"Chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome"

Foto JOANNA KOSINSKA



2022-04-20

Ao Brasil, com amor: uma troca mensal de cartas entre dois “estrangeiros” que nos levará até meados de 2022. Jamil Chade (em Genebra) e Juliana Monteiro (em Roma) compartilharão suas reflexões sobre o que será e quem seremos nesse momento de revolução. São cartas digitais. Mas os sentimentos, angústias e buscas são tão reais quanto seus próprios sonhos.

 

Roma, 20 de abril de 2002

Querido Jamil,

É a terceira vez que inicio esse texto. As andorinhas já cumpriram a parte romana da rota há algumas semanas. Finalmente, depois de dois anos, desenharam o céu sem a concorrência dos helicópteros trazidos pela Covid-19. É emocionante. Estamos conseguindo controlar a pandemia e o início da primavera trouxe dias tão claros e com tanta luz que foi difícil encontrar espírito para te responder sobre a guerra. Hoje está chovendo, talvez eu consiga.

Tudo parece já dito, desesperançado e inócuo. Lembrei que, no verão de 1932, Einstein escreveu para Freud, perplexo e implicado, como você, sobre o mesmo assunto. Parece ser o tema de todas as épocas. O gênio da física, um pacifista declarado, investigava alguma forma de livrar a humanidade da ameaça da guerra. O mundo não havia se recuperado da tragédia da Primeira Guerra Mundial e atravessava uma forte crise econômica. As tensões sociais haviam se agravado, o totalitarismo se enraizado. No ar, o temor de um novo conflito. Einstein sugeria, com certo entusiasmo, o esforço coletivo para a criação de um tribunal internacional, que tivesse poder de mediar e coibir o despropósito da guerra, em uma tentativa valorosa de deslocar a violência para o campo da palavra.

A carta encontrou um destinatário pessimista. Freud não acreditava que a paz fosse argumento forte suficiente para que os países renunciassem à parte de suas soberanias. Além disso, um tribunal mundial que tivesse tanta força para impor seu juízo teria, ele próprio, uma violência indiscutível. Por fim, acreditava que não seria possível – nem desejável - acabar com as inclinações agressivas dos homens, apenas almejar que encontrassem destinos outros que não a insanidade da guerra. Sua aposta era que “tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra”.

O que eles diriam se soubessem que, em 2022, embora essa carta viaje de Roma a Genebra pela pressão de um dedo sobre o teclado e sejamos capazes de desenvolver próteses para membros amputados obedientes ao pensamento, continuamos jogando bombas sobre pessoas e cidades. Compartilho o desalento da carta de Freud. Quando começamos a registrar a história, começamos a registrar a guerra. Todo ser humano que nasce é seu contemporâneo. Parece que somos, Jamil, a despeito de todo nosso potencial, uma espécie que faz a guerra. 

Sei que você não espera de mim a solução que nem Einstein nem Freud, nem a ONU ou qualquer tribunal conseguiu dar. E é assustador o quanto somos capazes de nos alienar do horror, embora tenha guerra por toda parte.  

Às vezes, é apenas uma questão de nomeação. E o nome tem consequência. Putin não chama de guerra a sua invasão. Brincadeira ou bullying, golpe ou impeachment, crime passional ou feminicídio, ditadura ou revolução. Como chamamos as coisas, diz de que lado estamos.

Não chamar de genocídio o assassinato de pessoas negras no Brasil é uma forma de naturalizá-lo e isso é tomar lado.

Não chamar de crime cada dia de omissão, boicote e atraso do governo brasileiro em relação às políticas de combate à pandemia é tomar lado.

Não reconhecer como guerra civil o impacto humano do conflito entre o crime organizado e as autoridades, em um país como o Brasil, é tomar lado.

Por que não é chamado de guerra o longuíssimo conflito mexicano, onde já morreram mais de trezentas mil pessoas de 2006 para cá? Mais gente do que no Afeganistão, três vezes mais que na Bósnia. Quando a palavra “guerra” fica escondida debaixo de tantos corpos, há que se olhar os corpos de perto. Quando o caos da guerra tem pretensão ordeira, uma contradição evidente de termos, como “guerra às drogas” ou “guerra cultural” ou “guerra preventiva” ou “guerra santa”, também. 

O que não é crime, em uma guerra, para acordarmos os ‘crimes de guerra’? É preciso que exista alguma permissão ou o limite seria riscado com o primeiro tiro. Esse é o consenso que conseguimos construir até aqui. Parece que a paz nos exigirá providências mais sofisticadas, guiadas mais pela razão do que pela racionalidade, radicalmente afetivas, não apenas iluminadas, mas aquecidas pelo fogo de Prometeu.

Brecht defendeu que é preciso retirar o misticismo preguiçoso das palavras. Chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome. Porque antes dos elegantes considerarem a monstruosidade de um ataque nuclear pelos corredores das Nações Unidas, normalizamos a matança de pessoas que estão longe, que são pobres, que têm outra cor, professam outra fé, que têm outros ideais, outra língua, outro uniforme, por território, por dinheiro, por recursos, por poder, por estratégia, segurança, retaliação, desacordo. Os motivos são tantos que pode ser qualquer um, pouco importa. Suportamos a ideia de gente que mata gente. “A paz parece ser a guerra em outro lugar”, Paul Valéry não poderia ser mais preciso.

Quando Putin invadiu a Ucrânia, a resposta de Anita às minhas explicações sobre a nova guerra foi simplesmente “que burrice”, enquanto Gael pensou em três ou quatro soluções, as diplomáticas e as fantásticas, antes de concordar com a irmã que a guerra é, sobretudo, uma burrice dos adultos. Em sua carta, Freud dá razão ao veredicto das crianças quando diz que a comunidade humana deveria subordinar os instintos ao domínio da razão e que “a guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização”. Burrice, pois.

Eu entendo que o domínio da razão é costurado com a linha do amor, não aquele romântico, mas o que contêm a centelha da inteligência, o sopro que fez nossa espécie supor deuses, inventar vacinas, voar, fazer arte.

Eu queria que, antes de considerar a guerra, considerássemos a vida com a gravidade que lhe é devida. Como uma mulher considera a vida recém-nascida. As mães sabem que, por muito tempo, seus dias são guiados por esse único imperativo: que seu bebê sobreviva. Que não morra. Por isso, lhe adivinhamos o frio e a sede e checamos, obsessivamente, se continuam respirando. Antes de amar, cuidamos. Vigiamos. Queremos que nossos filhos vinguem. E, depois que crescem, queremos que continuem vingando nosso investimento amoroso sendo felizes e realizados. Vingança, no glossário materno, é um substantivo que tende à vida, não à morte.

A escritora ucraniana Svetlana Aleksiévitch escreveu um livro sobre a guerra que as mulheres contam. Não há relatos do heroísmo de matar, não são lembradas as estratégias, as batalhas, os nomes dos generais ou suas condecorações. Não há os vencedores e os derrotados da maneira burocrática como os homens dividem o espólio humano da guerra. As perguntas mais desafiadoras, são as mais simples. Em um momento a autora escreve e isso me toca tanto: “como uma pessoa fica a sós com essa ideia absurda de que pode matar outra?”

Nesse livro forte e comovente, leio que Sófia se assustou quando fez carinho, pela primeira vez, em uma criança alemã feita prisioneira, depois se acostumou. Natália levava pão para o refeitório quando percebeu os olhos famintos de um menino, correu até ele, lhe deu uma bisnaga e ficou feliz, “feliz por não poder odiar”. Anastassia, que se alistou voluntariamente, fascinada pelo mundo militar, jamais voltou a vestir uma calça depois que a guerra terminou, não consegue, apenas saias e vestidos. Elena, que estava no front, conduziu uma cabra até deixá-la aos cuidados de um vilarejo, “era um ser vivo, também estava com medo”. Segundo Vera, a garota mais bonita de seu pelotão morreu queimada, poderia ter se salvado se tivesse abandonado os feridos. Lola disse que o mais terrível na guerra não era morrer, mas morrer de cuecas, “com uma aparência ridícula”. Maria levou uma mala de bombons para a guerra. Irina percebeu que um dos dois homens feridos que ela arrastava, à noite, pelo bombardeiro, era alemão, “os dois estavam queimados, pretos, iguais” e, ainda que estivesse tão cansada, não pôde abandoná-lo. Ester, que havia sido piloto, disse que, por três anos, enquanto lutou na guerra, não se sentiu mulher.

A fabulosa poeta polonesa Wislawa Szymborska escreveu que “depois de cada guerra/ alguém tem que fazer a faxina/ colocar uma certa ordem/ que afinal não se faz sozinha”. Eu penso que, nos assuntos da guerra, deveríamos consultar quem faz a faxina. Quem se lembra dos chocolates. Sobretudo, quem não quer morrer de forma ridícula. Aqueles que conservam esses traços inequívocos de humanidade, ao invés dos que se lançam, pela força, para fazer valer sua vontade, como as espécies que chamamos irracionais.

Apenas seis anos depois da ilustre correspondência, começou a segunda grande guerra. Freud fugiu de Viena para o exilio, em Londres. Einstein terminaria nos Estados Unidos. Noventa anos depois, outra guerra castiga a Europa e nós dois, Jamil, como eles, trocamos cartas com a esperança de dividir a revolta e dar conta da irracionalidade de mais uma guerra.

Na última página do seu livro impressionante, Svetlana traz essa reflexão do pós-guerra: “meu bem... As pessoas se odeiam tanto quanto antes. Matam de novo. Isso para mim é o mais incompreensível... e quem são? Nós... somos nós...”

Freud pergunta quanto teriam que esperar até que todos os homens se tornassem pacifistas como eles. Quase um século não foi tempo suficiente. Espero que, daqui a noventa anos, nossos netos não atualizem essa mesma carta e possam contar da primavera, das andorinhas, das saudades e dos pesares. Mas da guerra, não. A guerra terá ficado na história da construção da civilização. E será com escândalo, quase incredulidade, que lerão sobre ela. Para isso, precisamos de respostas que não sejam apenas mais lei, mais autoridade, mais instituições, declarações, punições. Nada disso funcionou.

Portanto, meu querido companheiro, ao seu convite, respondo que sim, vamos. Mas, dessa vez, precisamos inventar outro caminho.

 

Com todo meu coração,

Juliana

 

Para ler a carta de Jamil Chade a Juliana Monteiro, clique aqui.



Juliana Monteiro

É jornalista e escritora, tem dois filhos e mora em Roma.




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