Roma, 02 de junho de 2022
Querido amigo,
Nos primeiros anos desse século, eu tinha uma pequena câmera fotográfica e lembro de tentar registrar, na Trafalgar Square, certa indiferença inglesa que, à época, me parecia fascinante. Ia revelar junto com as fotos dos meus flatmates brasileiros e mandar para minha amiga, em Brasília, junto com uma carta que escrevia há vários dias contando que eu era, de fato, tão feliz quanto planejava ser em Londres, onde eu tinha ido morar. Queria convencê-la a migrar também e pedia notícias de pendências afetivas deixadas na capital. Telefonar era caro, tínhamos que passar pela Embratel, além de relevar o delay que descompassa o ritmo necessário para o prazer de qualquer conversa. Eu tinha um e-mail que usava para trabalho, uma coisa aqui outra ali. Mas teria que ir a uma lan house para acessar em uma lenta internet discada. E não daria para mandar as fotos, o que diminuía fatalmente meu poder de persuasão. Além disso, naquela época, eu não concebia falar de coisas tão caras e importantes, como sonhos, alegria, descobertas, fofocas e saudade, de uma forma tão sem cerimônia e descontrolada, assim me parecia. Fiz um envelope gordo com vinte fotografias e uma carta de várias páginas contando as aventuras de minha nova vida, escrevi o endereço no envelope, selei e confiei no mensageiro. Há apenas 20 anos, essa era a melhor maneira de falar de mim e saber dela.
Teria sido triste se essa correspondência tivesse se extraviado. Já outra carta, anos depois, para essa mesma amiga, não teria feito mal em desaparecer. Ela já disse, para me torturar, que a mantém na carteira para, em caso de necessidade, invocar tristeza ou chorar de raiva. Se for pensar, depois de escrita, chegando ou não ao seu destinatário, a carta, por sua própria existência, tem o poder de mudar o destino.
Sempre escrevi cartas. Muitas nunca enviei. A maioria foi escrita justamente para não precisar dizer, apenas pelo alívio imenso de saber que existem as palavras que diriam. Sempre me admiro ao constatar como qualquer alteração mínima no texto, uma palavra que se decide subtrair, uma oração propositadamente mal pontuada, a escolha por uma letra minúscula, até um erro de digitação interfere na mensagem quando estamos emocionados. Uma amiga diz que é grave colocar um ponto depois do “beijo”. Uma outra diz que gosta de ser nomeada, ler seu nome escrito no decorrer da mensagem do outro. Sou muito boa para homenagear e melhor ainda para brigar por carta, embora não tenha sido tão bem-sucedida nas tentativas de reconciliação escritas. Nesse caso, parece que preciso do calor dos meus olhos e braços. Todo mundo que já amei tem ao menos uma carta minha e ninguém jamais conquistou meu coração sem me deixar ler suas palavras. Isso não é original, as cartas têm uma história longa e importante. Muitas relações antológicas não existiram de outra forma.
Por isso, concordo com você que é imenso o poder do carteiro. Tivesse a carta que escrevi para minha amiga no lote do carteiro infiel, ela não teria ido, afinal, morar em Londres e esse fato microscópico teria mudado o mundo que é a minha vida e a vida dela e qualquer vida.
Sempre tive preguiça da nostalgia que não se refere a nós mesmos, aos nossos ideais, à própria vida vivida. Essa nostalgia de “outros tempos”, não gosto nem quando concordo. Mudamos nós, muda o planeta, a sociedade, as cidades, os costumes, é assim que é. Papiro, pergaminho, papel, whatsapp. Viver no tempo em que estamos e tentar interferir no que virá. Tentar o retorno ao que já foi me parece uma aberração, além de ser impossível.
O telefone celular, a internet, as redes: e o mundo se reconfigurou irremediavelmente. Hoje, para que a mensagem de Frei Lourenço não chegasse a tempo de impedir o envenenamento de Romeo, Shakespeare teria que inventar um apagão do whatsapp. Já Anna Kareninna ainda poderia ter cumprido seu destino literário nos trilhos do trem se Vronsky tivesse visualizado e não respondido sua mensagem. O sofista grego Libânio, que definiu a carta como “um colóquio de ausente a ausente”, hoje teria que reformular.
Sua carta me fez pensar que o carteiro que a trouxe até mim foi o mesmo que provocou nosso encontro. E que talvez ele leia essa mensagem antes de te entregar e saiba, antes de mim, a próxima palavra que vou usar. Ele também pode replicar uma mensagem indefinidas vezes e entregar em quantos endereços quiser. E pode escolher esses endereços. É muito poder. Talvez estejamos mesmo vivendo o colapso do nosso mundo, como você escreveu. Com a alma que vendemos alegremente embrulhada nos nossos dados. Mas, oxalá, nosso velho mundo não seja o único.
Acho um erro simplificar a internet e as tecnologias digitais como ferramentas, apenas. A adesão a elas nos impôs uma nova forma de estruturar o pensamento, fundou outra linguagem com a qual, como não poderia deixar de ser, fazemos cultura. Se nossas estruturas serão capazes de suportar o fluxo absurdo da mudança brutal provocada por esse novo sistema de pensamento, ainda não sabemos. A democracia, para ficar no exemplo mais à mão, sentiu o golpe. Talvez haja um caminho na formulação de Ian Wilson que você citou na sua carta. Se temos uma tecnologia dos deuses, o que faremos com nossas instituições medievais? Como protegeremos a integridade das nossas emoções e sentimentos paleolíticos?
As instituições terão que ser refeitas, mas acho que essa é a parte inevitável. Já nossos sentimentos me preocupam mais.
Na perturbadora novela de Henry James, A Fera na Selva, John Marcher pergunta para May: “o que salva você?”. Em tantos contextos me coloco a mesma questão. E nesse, que você traz em sua carta, não imagino resposta que não passe pelo que há de mais humano em nós. O corpo. Nossa capacidade de amar.
Sabe, Jamil, em um momento duro do lockdown aqui na Itália, em um dia especialmente difícil para mim, onde todas as minhas forças reunidas não eram suficientes para virar de um lado para o outro no sofá, recebi uma mensagem pelo Messenger do Facebook. Era uma mulher que nunca vi. Sei que mora em Recife, é bem-humorada, inteligente, tem o coração no lugar certo e gosta das coisas que eu escrevo. Em nossas rápidas interações públicas é sempre carinhosa. Pois nesse dia, ela sentiu falta dos meus escritos e resolveu me deixar saber disso. Perguntou se estava tudo bem, desejou força e coragem para uma desconhecida. Ainda pelo celular, ali mesmo, onde estava, escrevi sobre aqueles dias desafiadores. Agarrei a boia de ternura que essa mulher jogou de tão longe, emergi, voltei a respirar. Ela não sabe, mas, naquele dia, ela me salvou.
Antes da pandemia, outra mulher que nunca vi me encontrou em um grupo feminista do qual faço parte e pediu que eu “usasse meu privilégio branco” para ajudá-la a conseguir uma médica que a atendesse sem cobrar. Usara tudo que tinha para fazer um aborto, mas alguma coisa não andava bem e ela passava muito mal. Ao tentar atendimento no SUS, fugiu ao perceber que iria ser denunciada. Eu e três amigas – uma em Madrid, outra em Berlim, a terceira em Paris – conseguimos, no fim daquele mesmo dia, uma médica no Rio e nos juntamos para pagar os custos. Isso não seria possível antes da internet. Ela disse que nós a salvamos. Eu digo que ela nos salvou também ao nos comover e convocar. Somos tão seduzidos por essas tecnologias porque os sentimentos escoados por elas – equivocados, hipertrofiados, manipulados, não importa - são reais. E enquanto pudermos amar, nos comover e nos revoltar poderemos encontrar saídas para esse aprisionamento que tememos. Podemos, quem sabe, aprender a usar as redes depois de termos sido tão usados por elas.
Porque temos o corpo. Esse que “treme como tremia antes da fundação de Roma e depois”, descrito na poesia da Wislawa Szymborska. Porque as tecnologias digitais permitem a expressão do corpo simbolizável que é capaz de subverter o tempo-espaço, participar de uma reunião do outro lado do mundo, assistir um dueto da Mônica Salmaso na cozinha de casa, conectar-se com outro corpo, em qualquer parte do mundo onde ele esteja. Mas o corpo não é apenas meio de expressão. É no corpo que dói a saudade e se acende a alegria.
Em “A pele como litoral”, organizado pelo Christian Dunker, lemos uma distinção entre aquilo que é do corpo, em psicanálise, no sentido simbólico, aquilo que é do organismo no sentido imaginário e o que é da carne. Uma das minhas reflexões provocadas pela pandemia foi que, embora a internet dê conta das duas primeiras representações, ainda que tenhamos inventado formas novas de nos mover e de nos contar e de continuar girando a roda dos nossos sistemas de produção, não há vazão para a carne nisso que chamamos virtualidade. Segundo Dunker, para aquilo que é a nossa própria experiência impossível de corpo. O indizível de ser olhado, o que sente o corpo no espaço, no deslocamento, no gesto, na percepção física do corpo do outro, tudo aquilo que nos dá um corpo para além deste que somos capazes de dizer e, inclusive, inscrever na fantasia.
Não sei se a tecnologia será capaz de solucionar essa questão. O que não tem linguagem que exprima não pode virar código, programa, aplicativo, não pode ser manipulado pelo algoritmo. E talvez seja essa dimensão do corpo, afinal, o que irá nos salvar da distopia de um mundo filtrado, higienizado, mercantilizado, manipulado e conformado pelas telas.
Espero que sim.
Conto com a insubordinação da carne e com a subversão do amor.
O assustador, para mim, companheiro, é que talvez não.
Com esperança que essa carta leve até você o calor do meu afeto,
Juliana
Para ler a carta de Jamil Chade a Juliana Monteiro, clique aqui.