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Chagall, sua aldeia, uma tarde



2023-01-30

 

Não sei como desenhar o menino... pois até o bico de pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele vive.  

“Menino a bico de pena”. Clarice Lispector. 

 

 

 

Chega, e o convite entra com ela, “Vovó, vamos brincar?”. Esconde-esconde, massinha, jogo da memória, jogo da velha. Nunca pede a televisão ou celular, que nem tenho. Quer brincar

Sempre que posso, evito o esconde-esconde. Pede muita movimentação pela casa, que não é pequena e encerra um bocado de esconderijos possíveis. Mas, quando a energia suporta, vamos lá, pôr-me em portas fechadas na despensa da cozinha, no depósito da área, na oficina do avô, no lavabo do salão, buscar um canto na biblioteca ou sentar no alto da escada em caracol que leva até a sala. Essa última opção costuma ser infalível; ela vem, percorre todo o escritório, olha atrás das portas, procura aqui e ali. Mas deixa de olhar para cima, onde estou sentada e me deixo ver sem artifícios. As risadas da descoberta, que acontece por desistência, são contagiantes.

Dessa vez, negadas essas alternativas, decidiu: “Eu desenho, você desenha”. Corrijo, “não vou desenhar, eu conto história”.

“Você só pensa nisso” – diz, em clara reprovação. Ignoro a reprimenda. Bule de café, um clássico de Luís Camargo, que ocupou a infância da mãe dela, vai sendo folheado, a narrativa se impõe. Ela desenha no quadro branco da casa de bonecas e parece me ignorar. Mas olha para as ilustrações, responde à adivinha.

Tem asa, mas não voa.
Tem bico, mas não bica.
Anda sem ter pé.
O que é?

– Bule de café! (Ainda que a resposta estivesse à mostra, marcava ponto para interesse e atenção. Continuemos.)  

Na mão da menina, o pincel segue viagem. A boneca ganha forma, aos pés dela uma linha vira tapete. Como se a leitura não a estivesse interessando, me interrompe, discute seu projeto comigo. Decidiu colocar a torre Eiffel no cenário. Estende a mão, pega do móvel próximo o souvenir, faz dele o modelo, avança nos traços enquanto termino o Bule de café.

Pego outro livro. Conte-me mais, de Yael Frankel, uma autora argentina contemporânea. Um diálogo entre mãe e filha. A menina diz que havia visto um homem nascer de um ovo. A mãe ouve, se espanta e pede: conte-me mais.

– Desse homem nasceu um pássaro.

– Gostaria de conhecê-lo.

Perto de mim, na estudada indiferença para com aquilo que leio, a menina continua a desenhar. Mas abre espaço para ver as ilustrações, que continuo mostrando, na clássica forma de ler para crianças os livros ilustrados. E por aí prossigo, leitura para ela, descoberta para mim. Descoberta de segunda leitura, naturalmente. Vou fechar o livro em epifania, precisando de silêncio para assimilar o que dizem texto e imagem nessa narração em poema delicado, no qual os lugares se trocam, a mãe dobrando o corpo até a altura da filha para bem ouvir o que ela diz. Do poderoso lugar da fala, essa outra menina constrói também o mundo, igualmente sem restrições. Próximo ao final, diz ser filha de uma maçã. A mãe expõe sua dúvida.

– Mas então... se a sua mamãe é uma maçã, quem sou eu?

A definição vem, imediata e tranquila:

– Você é quem me deixa sonhar.

Peço desculpas pelo spoiler. Sem ele não poderia prosseguir.

Então, apesar da infância carregada de sustos, da juventude atormentada por um controle tirânico, do sexo como pesadelo mor, da vida adulta acompanhada em grande parte pela sombra de uma dívida impagável, então, apesar de tudo isso, minha mãe me permitiu sonhar?! Pois se me deu fantasias, vestimentas materiais que bordava varando as noites antes do Carnaval, dos meus aniversários, da festa da Primeira Comunhão; se me deu as peles intangíveis concedidas pelo estudo e pela leitura e me apresentou o viver feminino, embrulhado no celofane do sacrifício e da perda pessoal?!

Dessas peles, tomei as que me convinham. Ela tomou também para si muito do que alcancei, ao mesmo tempo em que se debatia dentro da pele alheia, pelo que desnudava da própria condição. Passando em revista as fantasias dela, encontrei o belo vaso Murano que herdei, as cerâmicas do Passuelo, os 30 vidros de perfume sobre a penteadeira, as coleções encadernadas de Machado de Assis e de Humberto de Campos. Acatei o desejo da casa própria e as obras contínuas para sua reinvenção. Abracei com braços e pernas o pai bondoso e justo que ela me deu, fiz a vida com os livros que me trouxe da Briguiet & Cia, onde trabalhou como funcionária. Não abriguei a nostalgia do noivo da família marceneira espanhola, deixado para trás em desistência lúcida e corajosa. Não precisei alimentar o sonho de um título universitário e recusei o trauma irreparável, pedregulho no meio do caminho, e deixei-o resumido a isso – ficar no meio do caminho, passível de ser contornado.

O livro no colo, volto para a conversa sobre a boneca e seus passeios em Paris. Em tarde de sol ardente, Chagall, sua aldeia, flutuam em uma casa de bonecas.



Nilma Lacerda

Nasceu no Rio de Janeiro, onde vive. Autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio, Estrela de rabo e mais histórias, Iberê Camargo: um homem valente, é também tradutora e escreve ensaios e artigos científicos. Recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio, o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil, além das distinções White Ravens, da Biblioteca Internacional de Munich para a Juventude  e Lista de Honra do International Books for Young People. Professora aposentada da Universidade Federal Fluminense, mantém na Revista Pessoa a Coluna Ladrilhos, com crônicas de talhe variado, em perspectiva lusófona.




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