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Abscisão foliar

Premier Printemps (Petits Faunes) (1909), por Pierre Bonnard; Museu Hermitage, São Petersburgo (Wikimedia Commons).



2023-01-29

Começamos o ano sentindo o sopro e avistando o que vem e vai.

 

Todas as folhas nos bosques dizem sim,
Elas só sabem dizer sim,
Toda pergunta, toda resposta
E o orvalho correndo no fundo desse sim.

Paul Éluard, "Georges Braque"

 

Há regiões geográficas nas quais as quatro estações não são tão bem definidas como o foram por Vivaldi, a ponto de propiciarem um bioma hostil o suficiente para a germinação de florestas caducifólias e seus belos tapetes dourados. 

Onde estou radicado, sinto que as folhas não caem orientadas pelos equinócios e solstícios. Parece que elas se desprendem das árvores ao serem atingidas pelo vento ou pelo cansaço. Assim, a queda não surge como o signo do retorno, mas de que aquilo que está enraizado segue vivo justamente por estar perdendo ao longo do passeio algo do que possui de mais precioso. 

Oposta ao repentino despencar em ordem-unida, a queda esparsa — uma aqui, outra lá — parece evidenciar algo — mas o que?

Talvez o seguinte trecho de Eterna, um escrito automático publicado pelo misterioso Georges Bessière na revista La révolution surréaliste em 15 de janeiro de 1925 e hoje traduzido por nós possa lançar luzes e sombras sobre a questão:

"Tenho sede de linhas imortais; (...) Ah, folhas mortas, ah folhas amarelas. ah, as vidas das folhas!, subindo e se deitando e se arrastando, podem começar a sinfonia de minhas noites mágicas, sem medo, sem medo; não sou um estrangeiro, pois meu coração está no meio de vocês, encarquilhado, caído de suas artérias, e vai da trilha ao riacho, do riacho às clareiras; pobre bloco seco de pergaminho no qual foi gravada a dor vesperal que as cóleras de vocês urraram às hipnóticas nuvens de outono…"

Árvores perenes prescindem do desnudamento completo para se manterem vivas e úmidas. A folha nova abana seu verdor à senescente levada pelo sopro, sucedendo-se uma à outra, encadeadas como os vagões de um trem e vendo a litorina passar ao longe. Se por um lado isso oculta a descontinuidade e denota com clareza o recomeço que mantém a vida, por outro não põe na mesa a maravilha da nudez erguendo seus raios ao céu graças à ruptura causada, por exemplo, por um obscuro inverno e o enfrentamento das agulhas de gelo junto ao fogo interior.

 



Natan Schäfer

Natan Schäfer (Ibirama, 1991) é mestre em estudos literários pela Universidade Federal do Paraná e pela Université Lumière Lyon 2. Foi professor do curso de Bacharelado em Artes Visuais da UNESPAR, membro da Psychoanalytische Bibliothek Berlin e tradutor convidado nas residências Looren América Latina (Suíça) e Résidence Passa Porta (Bélgica). É autor de Taquaras (Contravento Editorial, 2022) e tradutor de, dentre outros, Por uma insubmissão poética (Sobinfluência, 2022) e La promenade de Vénus (Venus D'Ailleurs, 2022). Atualmente é responsável pela Contravento Editorial, também assinando a coluna "A Fresta" na página da editora Aboio. Além disso, dá a ver em desenhos, pinturas, escritos e fotografias algo da poesia que lhe atravessa.




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