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Viajando pelo mar Kerribrasileiro

A Ilha de Hy Brasil. Theatro d'el Orbe de la Tierra de Abraham Ortello (Antwerp, 1602)



2023-02-02

 

this is tropical truth
this is celtic truth
this is Hy Brasil
in the Kerribrasilian sea

 

 

 

para Joan, Bríd, Ezimar e Tereza

 

Algumas vezes os mortos não morrem. Aqueles que estão vivos entre nós podem cair nas sombras até aprendermos a ouvir as vozes dos mortos e as mensagens herméticas que eles transmitem. Os sinais estão aqui e ali ainda que, a cada década que passe nessa era paradoxal de amnésia, se tornem mais difíceis de acessar. Sim, é assim mesmo, o presente está ausente até penetrarmos a ausência que está presente.

Em 2020, fiz uma viagem por milhares de quilômetros para chegar à cidade de Iguatu, no interior do nordeste brasileiro, no coração do sertão, no bioma da caatinga. Era ali que descobriria mais sobre meu primo Patrick. Cheguei em Fortaleza, a capital do estado do Ceará, no dia 3 de fevereiro. Ainda estava vestido de branco, depois de participar no dia anterior de uma celebração de Iemanjá, a entidade dos rios e rainha dos oceanos, dia esse que era também o aniversário de James Joyce, autor do grande romance-rio Finnegans Wake. Não há coincidência quando permitimos com que nos envolvamos com lugares, temporalidade e práticas criativas.

Dizer “Brasil” em voz alta e sonhar sobre o que poderia ser aquela vasta terra é algo que reverbera em mim desde menino. Para o meu primeiro projeto escolar aos oito anos em Dublin, na Irlanda, onde nasci e cresci, decidi desenhar e escrever sobre a floresta amazônica, pois minha imaginação de criança estava deslumbrada, de longe, pelo transbordante fato de que tudo parecia tão alarmantemente vivo. Nos livros que encontrei, tudo parecia estar florescendo e decaindo conjuntamente com os chãos moventes e as copas farfalhantes da maior floresta da Terra, através da qual muitos rios fluíam.




desenho da floresta amazônica feito pelo autor aos 8 anos para um projeto escolar 

 

Grande parte da área ao longo da enorme costa brasileira já foi chamada de Pindorama (terra das palmeiras) pelos povos indígenas Tupi-Guarani. Quando os navegadores portugueses desembarcaram acidentalmente nas praias da Bahia, em 1500, eles a chamaram de Ilha de Vera Cruz. Hoje, o país é conhecido como Brasil, nomeado em homenagem a uma madeira tintureira chamada pau-brasil, que outrora crescia em abundância ao longo daquele litoral. A palavra “brasil” provavelmente deriva do latim brasa (com o sufixo ‘-il’), pois a madeira era vermelha como brasa.

Mas tem uma outra história: o nome pode ter uma conexão com a ilha perdida de de Hy Brasil, que aparecia em mapas do medievo e do renascimento europeus localizada na costa oeste da Irlanda.

A palavra provavelmente vem do antigo irlandês Uí Breasail, que significa descendentes (Úi) da ilha (il) da beleza, valor ou poder (bres). Com a chegada da Era da Razão, a era da magia desvaneceu em canções, no esquecimento e na terra, ou se transferiu para a ciência, e Hy Brasil desapareceu de todos os mapas para se tornar um mito obscuro. Mas eu seguia a trilha do poeta português Fernando Pessoa, que escreveu: “O mito é o nada que é tudo”.

Hy Brasil estava na minha mente quando fiz a viagem de ônibus de sete horas de Fortaleza até Iguatu por uma paisagem pré-histórica de estranhas formações rochosas despontando da terra. Descobri, muito depois, que estes eram os monólitos Quixadá.




Monólitos Quixadá 


Meu grande amigo capixaba Fabricio, que havia viajado comigo de Vitória até Salvador, chamava isso de “Brasil profundo”. Conforme chegávamos perto de Iguatu, a paisagem começou a me lembrar do oeste da Irlanda. Eu estava chegando perto do cerne da história e de um encontro com meu primo.




desenho de uma árvore barriguda no bioma caatinga feito pelo autor

 

 

Dizem que o Diabo está Morto
 

Deixe-me contar um pouco do que sei sobre Patrick e sua história, que é o que me motivou a escrever este texto. Essa história demonstra os efeitos que a terra pode ter sobre nós e os efeitos que podemos ter uns sobre os outros. Ela reverbera através das minhas próprias viagens internas e externas ao Brasil ao longo dos anos e ressoa emocional e espiritualmente. Esta história é um caminho para uma ausência que se tornou vibrantemente presente.

Patrick nasceu em Scart House, em Castlecove, Kerry, na costa sudoeste da Irlanda.

 


Mapa de Kerry, na costa sudoeste da Irlanda 

 

Ele era o filho de Maurice Fitzgerald e da irmã de meu avô, Lil O’Sullivan. Meu avô (meu homônimo), conhecido como Batt, nasceu em casa em Caherdaniel, a seis quilômetros de Castlecove.

Patrick tinha três irmãs mais velhas – Mary, Joan e Bríd. Mary, a mais velha, morreu em 2007, e Joan e Bríd estão vivas e bem em Kerry hoje. Ele também tinha duas irmãos mais novos: Maurice, nascido em 1949, e Eilis, nascido em 1951. Ambos morreram jovens: Maurice em 1951 de pneumonia após uma pequena cirurgia, e Eilis em 1953 de espinha bífida e hidrocefalia.




Joan Rayle, irmã de Patrick, em Castlecove, em frente à casa Scart onde nasceram todos os seis
 

Nascido em 8 de junho de 1945, Patrick era lembrado como um menino alegre e radiante, muito amado por todos, tendo sido ordenado como padre redentorista em 5 de julho de 1970. Patrick deixou a Irlanda em 1972 (um ano que começou com o Domingo Sangrento e teve o maior índice de mortos decorrentes dos problemas no norte da Irlanda) e chegou em Brasília com sua bagagem e seu violão.

Brasília havia sido fundada doze anos antes e, como ocorre frequentemente no Brasil, o místico e o antigo se fundiam com o modernismo extremo na nova capital. Algo similar pode ser visto no surpreendente romance de João Guimarães Rosa intitulado Grande sertão: veredas, publicado em 1956, o mesmo ano que Brasília foi proposta como a nova capital pelo então presidente Juscelino Kubitschek. Esta obra-prima visionária começa com a palavra “Nonada” [que pode significar ‘no nada” ou “é nada”], e termina com a palavra “Travessia”, e cujo protagonista se chama “Riobaldo” (literalmente rio baldo [falho, carente]). Depois de três meses em Brasília para aprender algo da língua, história e cultura do Brasil, Patrick foi enviado para Iguatu no verão de 1972. Iguatu deriva de palavras tupi-guarani “ig” ou “y”– que significa “água”; e “catu” – que significa “boa”. Em uma paisagem tão seca na maior parte do ano, seu nome indica um local convidativo. Tudo indica que ele se apaixonou pelo lugar instantaneamente. Em uma congregação, ele disse ao seu superior, Padre José: “Sempre quero ficar em Iguatu”. Seu desejo seria concedido.

A Irlanda, nas décadas de 1960 e 1970, era em sua maior parte um espaço fechado. Não havia eletricidade em partes de Kerry e havia uma emigração extremamente elevada. Estar de repente em Iguatu deve ter sido como ser transportado para outra dimensão. O que estava passando pela mente de Patrick quando ele atravessou o Atlântico para o hemisfério sul? Como foi para ele fazer o mesmo percurso que fiz pela paisagem de Quixadá? Tal alegria e admiração devem ter tomado a alma desse homem entusiasmado. Tudo ao seu redor teria se infiltrado em sua visão e em seus pensamentos: as condições climáticas extremas, das chuvas bíblicas à seca; os sons cacofônicos de todos os bichos durante a noite; as energias elétricas na terra e no ar tão perto da linha do equador; os rápidos amanheceres e entardeceres; as comunidades mistas de indígenas, africanos e europeus. Naquele tempo, a música da bossa nova, da MPB e da Tropicália, que seduziriam o mundo, estava explodindo, não apenas no sul, em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas também no nordeste, na Bahia e em Pernambuco. E a seleção brasileira, com Pelé como garoto-propaganda, havia vencido a Copa do Mundo no México pela terceira vez em 1970. Todos esses elementos teriam deslumbrado qualquer visitante.

Mas também havia uma corrente muito perturbadora ocorrendo no Brasil naquele tempo (que continua presente até hoje). Uma ditadura militar governava o Brasil desde 1964 e as pessoas que se opunham ao governo estavam sendo torturadas. Havia uma visão agressiva para se modernizar o Brasil rapidamente, o que significava desmatar a floresta amazônica em um ritmo implacavelmente acelerado. A população começava a aumentar rapidamente, mas lhe faltava acesso a recursos materiais, e havia uma enorme disparidade na riqueza monetária, o que resultava em uma imensa pobreza em todo o país. Este era o Brasil: dança e música por todo lado; uma ditadura militar; pobreza em massa; crenças católicas fundindo-se com candomblé e umbanda; comunidades indígenas (muitas ainda isoladas) vivendo em simbiose com a terra; e o começo do movimento evangélico cristão. E então havia as passagens distintas da vasta floresta amazônica, do interior do sertão, do que restava da mata atlântica, do infindável litoral com praias de areia dourada e branca e do pantanal ao oeste. Ouvi alguém dizer que os EUA não tinham realmente um nome, mas tinham um país, enquanto o Brasil tinha um nome, mas não tinha realmente um país. Quando Tom Jobim (coautor de Garota de Ipanema e um dos pioneiros da bossa nova) foi questionado sobre as diferenças entre viver em Nova York e no Rio de Janeiro, sua resposta foi: “Morar em Nova York é bom, mas é uma merda; morar no Rio é uma merda, mas é bom”.

Em Iguatu, os jovens imediatamente se simpatizaram com Patrick. Ele era cheio de vida e exótico; ele usava camisas descoladas e adorava contar piadas. Ele cantava músicas folclóricas irlandesas com seu violão. Ele conheceu um menino que tinha uma banda e se tornaram bons amigos. Afeiçoando-se naturalmente com as pessoas e a cultura, ele ouvia avidamente cantores como Dalila e Roberto Carlos (outro capixaba) – conhecido como “o Rei” (que faz aniversário no mesmo dia que meu irmão, muito embora tenha nascido trinta e quatro anos antes). Patrick em pouco tempo estava tocando “Jesus Cristo”, canção de Roberto Carlos que foi lançada em 1970, e sempre escutava outro clássico do rock religioso intitulado “A Montanha”, lançado no ano em que chegou. Roberto Carlos estava em seu auge, tendo encontrado Deus e adaptando-se brilhantemente ao som mais ousado dos anos 70 – uma combinação perfeita para uma nova geração de brasileiros.

Antes de visitar Iguatu, Bríd, a irmã de Patrick, me deu o número do Padre Dick Rooney, que estava vivendo em Dundalk depois de ter passado décadas no nordeste brasileiro. Pelo telefone, Padre Rooney lembrou-se com carinho de Patrick e recontou como ele costumava estar sempre cantando uma música folclórica irlandesa intitulada ‘Some Say the Devil is Dead’, cujo refrão conta de como o diabo teria sido supostamente enterrado em Kerry, tendo então ressuscitado dos mortos e se juntado ao exército britânico. Inconscientemente ou não, senti que Patrick havia tocado na alma brasileira através dessa música: na proximidade de Deus com o diabo na terra; no deslocamento e mistura de influências e pessoas; e na realidade sempre presente de vida e morte vívidas residindo lado a lado.

Na tarde de 16 de abril de 1973, ao final de um retiro de dois dias com mais de cinquenta crianças da região de Iguatu, Patrick decidiu dar um mergulho no rio Jaguaribe, que corre ao longo da cidade. Seria seu primeiro e último mergulho no rio volátil. Era o início da Semana Santa, o dia depois do Domingo de Ramos. Seu corpo foi encontrado por um pescador três dias depois, rio abaixo. Ele tinha vinte e sete anos.

Quatorze anos depois, Bríd veio até Iguatu, pensando em levar seus restos mortais para Irlanda. A Irmã Bríd foi enfermeira e membro da Ordem de Misericórdia em Trujillo e em Lima, no Peru, de 1984 até 1990, e fez a visita à Iguatu durante este tempo, hospedando-se no mesmo quarto que Patrick. Ela decidiu que deveria ficar onde ele estivera em Iguatu, pois isso era o que ele havia pedido. Alguns dos sobrinhos e sobrinhas de Patrick também visitaram Iguatu mais tarde, em viagens como mochileiros.




Patrick com uma camisa descolada parado na beira do rio

 

Amhdhorchacht

Anos depois, agora era a minha vez de ir a Iguatu. Eu também vaguei por lá com um violão e falava português após ter vivido por quase uma década em Lisboa.




Desenho do nordeste brasileiro feito pelo autor: o Jaguaribe corre para o mar em Fortaleza, no canto superior direito do mapa. 
 

Alguns anos antes, Bríd havia me enviado um monte de números de telefone de padres da ordem redentorista que estavam no sertão e que haviam conhecido Patrick. Fui ao Brasil em 2017 com a ideia de que poderia investigar essa antiga história familiar, mas depois de dar aula por algumas semanas em uma universidade federal, acabei seguindo o rastro do humanitarista e revolucionário irlandês Roger Casement, que me levou 3.000 quilômetros pelo rio Amazonas. Liguei para os números que a Irmã Bríd havia me dado somente em 2019, de Lisboa, o que me levou até Tereza Cavalcante, a atual secretária paroquial. Ela não conhecera Patrick, mas se ofereceu para me apresentar às pessoas em Iguatu que o conheceram.

Tereza mandou um taxista me buscar na rodoviária de Iguatu e me levar ao Hotel Diocesano. O nome do motorista era Ishmael. “Deus ouve”. Nomen est omen. Todo nome carrega uma mensagem. Call me Ishmael. O protagonista humano daquele grande romance errante norte-americano, Moby Dick, que começa com a palavra “call” [chamado/ chame-me] e termina com a palavra “órfão”. Ishmael não falou comigo. Sua companhia e silêncio eram tranquilizadoras. Eu disse tchau, saí do carro e dei entrada no hotel. Nunca esquecerei os sons que escutei naquela primeira noite. O ar úmido e escuro estava enfaticamente desperto para mim, os barulhos e ritmos se costuravam em chamado e resposta, sons que nunca ouvira na minha vida. Repentinamente, senti a necessidade de dizer alto minha palavra irlandesa favorita – amhdhorchacht – que pode ser traduzida como lusco-fusco, alvorecer ou crepúsculo. Muito embora o sol se ponha muito rapidamente nesta parte do mundo, o som e sentido dessa palavra naquele momento invocavam uma outra forma de ver e ouvir. Quarenta e sete anos depois da morte de Patrick, chegando e dormindo com todos aqueles sons intensificados se aproximando, senti uma espécie de retorno ao lar. Os espíritos nas árvores e nas águas ouviram minha chegada.



Na manhã seguinte, Tereza me buscou e me levou ao escritório paroquial no centro da cidade. Três pessoas estavam aguardando por mim lá: um jovem pároco chamado Padre João Batista, um padre mais velho chamado Monsenhor Queiroga e uma mulher chamada Ezimar Araújo. Ezimar era a antiga secretária da paróquia. Ela tinha catorze irmãos e irmãs e era a filha da Mãe dos Padres (voltarei a isso mais tarde). Ela era só uns anos mais nova que Patrick e passou muito tempo com ele durante sua breve estada em Iguatu. Ela lembrava muita coisa – datas, lugares e o que as pessoas tinham dito. Imediatamente começamos a falar em português sobre Patrick – ou Padre Patrício, como ele era conhecido. Nosso entusiasmo mútuo nos ajudou com que nos entendêssemos apesar do meu forte sotaque irlandês-português e do seu sotaque regional do Ceará. Ezimar e Mons. Queiroga me contaram histórias. Eles falaram sobre a alegria e o vigor juvenil de Patrick, e como ele parecia com Elvis com seu grande tufo de cabelo. Eles guardaram com carinho um álbum cheio de fotos em preto e branco. Para mim, aquelas eram fotogramas preciosos, portais de viagem para o passado.

Havia até uma fotografia das duas sobrinhas de Patrick, as gêmeas Hilda e Colette, que têm agora 56 anos, no momento em que escrevo estas palavras. Eu havia conhecido por acaso mais duas de suas sobrinhas, Siobhán e Bridget, na praia Derrynane, em Kerry, apenas alguns meses antes de ir para Iguatu (a irmã de Patrick, Joan, teve seis filhos: quatro meninas e dois meninos). Patrick deve ter viajado com essa fotografia, ou então ela foi enviada para ele. Havia também uma foto de Patrick em traje sacerdotal, segurando um cálice.







Ezimar e Patrick

Nessa outra foto abaixo, Patrick está sentado à margem do rio Jaguaribe. Com os olhos semicerrando e seu sorriso largo, observa-se que ele é o único olhando para o fotógrafo.


 

Ezimar lembrou da festa de Natal que Patrick organizou em 1972. Era seu primeiro Natal fora da Irlanda, então deve ter sido uma grande ocasião para ele mostrar aos seus novos amigos brasileiros como esse dia era celebrado em sua terra natal. Ele decorou uma árvore, embrulhou presentes e cantou canções. Eles acabaram escutando Roberto Carlos pelo resto da noite. Ezimar deu um grande e acalentador sorriso após terminar a história e então olhou para mim diretamente como se tentasse ver quem eu realmente era. Eu vi determinação e sofrimento em seus olhos, uma vontade de viver e de se doar. Escutei e gravei Ezimar e Mons. Queiroga. Tereza e Padre João Batista garantiram que estivéssemos todos confortáveis.

O plano era me levar até a Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro-Prado-Iguatu e depois descer o rio, mas quando estávamos saindo do escritório paroquial, notei o retrato de Patrick na parede. Parei bem no meio do caminho. Era o único retrato em exibição, e aqui estava ele, me encarando com o bom e velho brilho de Kerry em seus olhos. Fiquei impressionado com a semelhança com meu sobrinho Barra e por um segundo me vi na imagem. De repente, pareceu muito certo estar aqui. Ezimar colocou sua mão sobre meu ombro. Então deixamos o prédio e caminhamos juntos até a igreja.

Lá no altar estava a lápide de Patrick para todos verem. Eu não tinha ideia de que ele estaria tão presente. Ausência real. Cada passo do caminho nesse dia parecia um desdobramento natural com Patrick como nosso anfitrião. Ezimar, Mons. Queiroga, Tereza e eu fomos capturados em uma fotografia, mostrando-nos abraçados, olhando para a lápide no altar.  




Diante da lápide no altar. Da esquerda para a direita: Mons. Queiroga, Tereza, o autor e Ezimar



Por um momento fugaz, me perguntei se esse memorial magnânimo ao Patrick era um tipo de gesto pós-colonial, uma reverência subserviente a um visitante europeu. Mas, olhando ao redor, sentindo a atmosfera, e ouvindo Ezimar falar, esse pensamento se dissipou rapidamente: eu sabia que era muito mais. Foi uma tragédia para a cidade e para Patrick; e agora era uma alegria e uma cura para Iguatu, para Patrick e, finalmente, para mim. Nós cruzamos o mar Kerribrasileiro. Era hora de descer o rio.

O rio Jaguaribe é o maior rio seco do Brasil. Mas como me disse Joan, a irmã de Patrick, na praia Derrynane, seis meses antes da minha chegada em Iguatu: “não tinha nada de seco nele naquele dia”. Durante metade do ano não tem água e, de repente, a chuva cai e o rio sobe e sobe, geralmente transbordando e inundando a cidade, antes de desviar e desembocar ao leste, no oceano Atlântico. O rio dos jaguares. A palavra jaguar deriva de yaguara em tupi-guarani, que significa “fera que vence sua presa com um salto”. Mas jaguares e onças não são vistos nessa região há muito tempo.

No rio, naquela tarde de abril de 1973, juntamente com as crianças e adolescentes, havia três homens, todos irlandeses: Padre Anthony Branagan (Padre Antonio), Padre Michael Lavery (Padre Marcelo) e Padre Patrick Fitzgerald (Padre Patrício). Anthony e Patrick foram nadar. Algumas das crianças já estavam na água e os avisaram do perigo. Anthony assegurou-lhes que Patrick era um nadador campeão. Mas isso foi em uma piscina. Aquilo era um rio no Brasil. Minutos depois, ele foi pego em um redemoinho. Anthony e as crianças pensaram que ele estava fingindo quando sua cabeça subia e descia, depois subia e descia novamente. Então ele desapareceu. O terceiro dos três homens observou impotente desde a margem.

Padre Michael Lavery trabalhou em Iguatu e então, depois, foi trabalhar em Fortaleza, onde morreu, aos oitenta e sete anos. Padre Antonio Branagan esteve no Brasil (no Ceará e então em Goiás) de 1963 até 1995, e então foi trabalhar na Sibéria (na região de Kemerovo Oblast), de 1996 até 2020. Em decorrência da pandemia de Covid-19, ele retornou à Irlanda para viver no Monastério Clonard, em Belfast. Enquanto escrevo esse texto, Padre Anthony está com oitenta e oito anos. Houve outros que vieram para trabalhar na paróquia durante os anos 1970, uma geração de padres missionários e voluntários irlandeses. Ezimar recordava vividamente mais detalhes a cada momento que passei em sua companhia. Ela me contou que havia um outro homem chamado Padre Brendan Callanan que chegou em Iguatu poucos meses depois da morte de Patrick. Eles o chamavam de Padre Brandão. Ela disse que Brandão estava vivendo agora na Irlanda, trabalhando em uma paróquia em algum lugar que ela desconhecia. Ela também conheceu Padre Dick Rooney; e havia um padre chamado Brian Holmes (conhecido como Bernardo em Iguatu) que tinha sido amigo íntimo de Patrick e que havia estudado junto com ele na Irlanda. Ele agora vive em Moçambique. Padre Holmes, originalmente de Cork, veio de Fortaleza para Iguatu para visitar Patrick no dia em que ele morreu.  




um dos desenhos do autor imitando uma imagem de The Books of Kells, um manuscrito irlandês do Evangelho com iluminuras, em latim, de ca. 800 d.C., agora mantido na Trinity College Library em Dublin

 

Entramos em quatro no carro – Ezimar, Tereza, Mons. Queiroga e eu – e nos dirigimos para fora da cidade por cerca de dez minutos, seguindo uma estrada com arbustos, ou mata, e buritis em ambos os lados. Pingos de chuva começaram a cair pela primeira vez em oito meses. Paramos o carro e caminhamos o resto do percurso por um caminho empoeirado cheio de lixo plástico com uma cerca de madeira podre em um dos lados. Segmentos de mata estavam por todo lado até que chegamos a um espaço aberto desbastado onde o Jaguaribe logo encheria novamente. Ninguém falou. Andei levemente pela terra rachada onde Patrick havia nadado. Cada um de nós estava em nossos próprios espaços, cada um repousando sobre o mesmo assunto. Depois de um tempo, aproximei-me de Ezimar. E então ela quebrou o silêncio me contando que as pessoas de Iguatu rezam para Patrick e pedem sua graça, como se faz com os santos. Ela disse: “Eu rezo, peço coisas para ele, e ele intercede. Eu recebo meus pedidos em minhas orações, graças a ele”. Então completou saudosamente: “ele sempre quis morar aqui... Ele tocava violão e era feliz”.

Dirigimos de volta para a cidade para visitar Dona Laurenise Araújo, mãe de quinze filhos, incluindo Ezimar, e conhecida na cidade como Mãe dos Padres e mãe do Brasil.




o autor e Dona Laurenise Araújo
 

Ela serviu salgadinhos e café. Radiante e acolhedora, com sua cabeleira roxa, ela devia ter quase noventa anos. Rimos e flertamos um com o outro. Ela me contou que Patrick era bonito. Ela também era, com sua enorme hospitalidade e com a maneira leve e alegre com que carregava o peso de seus ancestrais.

Então nós quatro caminhamos de volta para o escritório paroquial onde voluntários estavam servindo comida para cerca de cem pessoas da comunidade – voluntários da paróquia preparam uma refeição todo dia para aqueles que precisam.  




Almoço servido no centro paroquial


Mais uma vez fiquei impressionado pela gentileza e pela dureza da vida aqui. As palavras do escritor Jan Morris ecoaram em minha cabeça: “bondade, o poder governante de lugar nenhum”. Esta é uma região que foi abandonada pelo establishment brasileiro, um lugar onde a teologia da libertação seria bem-vinda. Um proponente cearense deste movimento, Padre Hélder Pessoa Câmara, uma vez disse: “Quando dou comida ao pobre, eles me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista”. Aqui reside uma profunda tragédia nas atitudes que ocorrem no Brasil e no mundo.




Os voluntários que preparam o almoço

 

Naquela noite, Padre João Batista celebrou uma missa na igreja. No fim do sermão, me convidou ao altar para ver toda a congregação e todos se levantaram e deram uma longa salva de palmas. Mais tarde, quando já estava escuro como breu, caminhei pelas silenciosas ruas e passei por uma academia cheia de corpos humanos suados malhando com as máquinas de exercício. Olhei através da grande janela e assisti. A maioria das pessoas estava correndo em esteiras, metade delas estavam com fones de ouvido e alguma música comercial estava tocando na rua. Segui em frente. Dez minutos depois, estava no limite da cidade. Havia montes de entulhos e sujeira em ambos os lados da estrada e apenas algumas luzes dos postes funcionavam. Uma vaca mastigava os últimos tufos de grama disponíveis. No meio da sujeira estava uma placa dizendo “Vende-se este terreno”.



 

Depois de fazer companhia à vaca por alguns minutos, rapidamente fiz meu caminho de volta aos meus aposentos, esperando escutar a orquestra noturna da natureza mais uma vez. Fora do meu quarto, escutei novamente os sons lá fora no escuro. Era o espírito do jaguar há muito desaparecido rosnando para o céu noturno e através das árvores? Chamando-me através de Patrick?

Na manhã seguinte, Tereza arranjou para que outro motorista de taxi me levasse até a rodoviária para retornar à Fortaleza. Seu nome era Joaquim, e nós começamos a conversa imediatamente. Assim que contei a ele por que estava ali, ele parou o carro no lado da estrada. Ele só tinha nove anos naquele tempo, mas ele lembrava vividamente do dia em que Patrick faleceu, e de quando o pescador encontrou seu corpo rio abaixo alguns dias depois. Houve silêncio por quase um minuto, enquanto eu ouvia o zumbido do motor do taxi. Então Joaquim falou novamente, desta vez para dizer que ele queria me mostrar algo. Ele me levou para uma área de Iguatu chamada Vila Centenário, cuja maior parte foi construída em 1974. Descemos uma de suas principais ruas. Essa rua é chamada Rua Padre Patrício. Saí do carro e toquei a placa da rua e sorri. Então Joaquim me levou até a rodoviária e voltei para Fortaleza naquela noite. 




 

 

Retirantes – do Ceará para Curitiba e Espírito Santo

É o momento para mais um intermezzo antes que eu conclua esse relato. É outro choque, uma ruptura de ausência real, mostrando-me talvez como eu estava no caminho certo, muito além de saberes treinados ou articulações lógicas. Como diz o ditado irlandês: Éist le fuaim na habhann agus gheobhaidh tú breac [escute o som do rio e você vai pegar truta]. Em 2017, fui convidado para dar aula de filosofia e literatura na Universidade Federal do Espírito Santo, na capital Vitória, pelo professor Jorge Viesenteiner, grande amigo da minha amiga e colega de Lisboa Marta. Eles se conheceram na Alemanha durante seus estudos de doutorado. Marta deveria ir à Vitória, mas teve que cancelar e sugeriu que talvez eu fosse em seu lugar. Então eu fui, desembarcando no Brasil pela terceira vez.

O estado do Espírito Santo está espremido entre a Bahia, ao norte, Rio de Janeiro, ao sul, e Minas Gerais, ao oeste. As pessoas do Espírito Santo são chamadas de capixabas. É uma palavra tupi-guarani que significa “terra limpa para plantar” [upi caá e pixaba]. Os indígenas que viviam em Espírito Santo chamavam suas plantações de milho e de mandioca de capixaba. O nome pegou. Durante o tempo que passei em Vitória, fiz amizade com Jorge. Mantivemos contato depois e felizmente nos vimos novamente em 2019 em Lisboa. Quando lancei meu álbum solo em março de 2022, que foi escrito no Brasil, mandei uma cópia para Jorge e contei a ele um pouco sobre a última música, intitulada “Iguatu”. Em 12 de março, recebi uma mensagem de voz enviada por Jorge. Ele tinha escutado o álbum e ficou particularmente interessado por “Iguatu”, uma vez que sua mãe havia nascido lá, o que era uma novidade para mim. Ele disse que não conseguia entender alguns dos detalhes das palavras da música, mas que ela o tocou profundamente. Ele decidiu compartilhar a música no seu grupo de família do Whatsapp, dizendo que era a música de um amigo sobre um primo que era um padre e que se afogou lá. Sua mãe – que não entendia nada de inglês – escreveu de volta dizendo que ela se lembrava do padre que se afogou no rio Jaguaribe há muito tempo. Jorge ficou maravilhado. “Você conheceu esse padre?”, ele perguntou a ela. “Claro que eu conheci ele!”, ela disse. “Padre Patrício. Trabalhei com ele em Cáritas”.

A mãe de Jorge, Francisca Iranilda de Lima, nasceu em Iguatu em 1951, apenas cinco anos após o nascimento de Patrick. Ela contou a Jorge que Patrick era jovem e bonito. Na mensagem de voz, pude ouvir Jorge rindo. Sua mãe se lembrava de tantos detalhes do que ocorrera muito tempo atrás. Eles tinham construído uma relacão próxima trabalhando juntos na paróquia. Ela recontou a Jorge que no dia em que Patrick chegou em Iguatu, ele foi levado ao centro paroquial, onde uma recepção e um almoço o esperavam. A mãe de Jorge e seu superior Expedita Alcântara (carinhosamente chamada de “Nenzinha”) haviam preparado purê de batata com ervilhas e peru recheado, que foi servido com cerveja malzbier. Depois de beber a cerveja, Patrick de repente se sentiu muito mal. Pode ter sido uma reação alérgica, e ele teve que ser levado ao hospital. Fracisca Iranilda se lembrava daquele dia muito claramente. Jorge disse que sua mãe começou a chorar baixinho conforme as memórias da terra que ela havia deixado há muito tempo fluíam. Uma vida antes de outra vida.

No final de 1974, Francisca Iranilda trocou o Nordeste, como muitos naquela época, pelo sul do Brasil. Curitiba é a cidade para qual Iranilda se mudou, quando Jorge nasceu, e também de onde é uma garota por quem me apaixonei; dizem que o nome da cidade vem do antigo Guarani “kur” “-ity” “ba”. “Ty-ba” é um sufixo para muito, e “kur y” se refere ao pinheiro, o que indica o grande número de árvores araucaria brasiliensis na região. Francisca Iranilda ainda tem primos em Iguatu, mas a maior parte da família foi embora. Eles eram parte dos assim chamados Retirantes – um grande movimento de pessoas que desceram do sertão por causa da seca e da extrema pobreza. Iguatu era apenas mais uma cidadezinha no sertão, terra de gente esquecida no Brasil. Depois de dar aula em Vitória, viajei até o rio Amazonas e entendi porque a Amazônia representa o pulmão do Brasil (e talvez do mundo). Mas agora entendo que o sertão é o coração.

Pude sentir e ouvir pela mensagem de áudio que Jorge estava se emocionando. Como isso era possível? Alguma estranha energia me chamou até o Espírito Santo em 2017 para que pudéssemos nos tornar amigos? Jorge sabia, inconscientemente, que algo mais estava acontecendo? A quem exatamente estou falando? Jorge começou e terminou sua mensagem de áudio repetindo palavras, que eu havia dito a ele, do maravilhoso poema “Le souffle des ancêtres”, do poeta senegalês Birago Diop: Os mortos não morrem. Les Morts ne sont pas morts. The dead do not die.

 


Rio Jaguaribe, 5 de fevereiro de 2020

 


Rio Jaguaribe, 18 de março de 2020. No canto inferior esquerdo Djalma, o sacristão da igreja Prado-Iguatu

 

Riverrun

A linguagem é como um rio: começa gaguejando, brotando, então movendo-se por baixo e por cima de pedras, pegando velocidade e aumentando o volume, serpenteando e divagando, curvando-se e refreando, juntando e carregando sujeira e lixo e besteiras, tornando-se estagnada, se alongando, então pegando ritmo novamente antes de se esvaziar no mar aberto. “The water of the face has flowed” [A água da face fluiu], como Joyce escreveu em Finnegans Wake. Rios e linguagens são estados de errância. Eu também sou um errante. Iguatu – aquela “água boa” – torna-se uma canção de chamado e resposta, onde cantar é existir, e onde a respiração do jaguar sobe e desce na noite.

Ouço as palavras do poeta mineiro, Carlos Drummond de Andrade: A ausência é um estar em mim.

Ouço Patrick nas ruas de Iguatu.

Ouço-o nas vozes de Ezimar, Francisca Iranilda, Joan e Irmã Bríd.

Ouço-o nas pedras da igreja em que está enterrado.

Ouço-o no zumbido do taxi e em seus motoristas, Ishmael e Joaquim, me levando para casa.

Ouço-o nas crianças brincando e rindo juntas na estrada suja e empoeirada.

Ouço-o nas canções pop de salvação de Roberto Carlos de 1972.

Ouço-o nos sons dos bichos no amhdhorchacht.

Ouço-o nos rios, um sempiterno espaço de redemoinhos, profundo como a alma humana.

 


 sol celta-tropical desenhado pelo autor

 

 

Zagreb, outubro de 2022.

 

Texto traduzido do inglês para o português por Lucas Lazzaretti.

Notas do autor:
Agradeço a Tomica Bajsić e ao PEN Centre da Croácia por me apoiar dando o espaço e o tempo para escrever este texto. Pode-se ouvir a canção “Iguatu”, do álbum Jabuti, em Bandcamp.



Bartholomew Ryan

Nasceu na Irlanda. É filosofo, músico e investigador no Culturelab no Instituto de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa. Foi o coordenador do CultureLab entre 2017-2022. Atualmente é o coordenador do novo grupo ‘Formas de Vida e Práticas da Filosófia’. O seu trabalho académico e criativo orbita em torno do tema central da ‘transformação’ e da pluralidade do sujeito, levando em consideração as máscaras, ecologias e identidades (múltiplas) que definem a condição humana moderna. Publicou vários artigos e livros sobre estes temas e entre a filosofia e a literatura. O livro mais recente chama-se Fernando Pessoa and Philosophy: Countless Lives Inhabit Us (co-editor, 2021). É também autor do livro Kierkegaard Indirect Politics: Interludes with Lukács, Schmitt, Benjamin and Adorno (Brill, 2014). Ensinou em universidades no Brasil (UFES, USP, UFSC, UnB) e em Berlin (Bard College /ECLA), Oxford, Aarhus, Dublin, Lisboa e Bishkek. Em música, é lider da banda internacional The Loafing Heroes e membro da formação de áudio experimental Headfoot. Em 2022, lançou um álbum solo chamado Jabuti (sob o selo Loafing Hero), cujas músicas foram escritas no Mosteiro Zen Morro da Vargem, no interior do Espírito Santo, Brasil.




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