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Fagulhas em deferência

IMAGEM: Ewerton Martins Ribeiro (via DALL-E 2)



2023-02-12

Somente é possível adentrar sozinho a literatura, mas para adentrá-la sozinho é preciso também receber ajuda.

Karl Ove Knausgård

 

Breve fábula

a Esopo

Era uma vez um animal que só se movia no espaço, nunca no tempo.

Tão cedo percebeu sua sina, tratou de locomover-se o mínimo possível, já que em todo lugar a que ia, permanecia para sempre, o que o levava a ocupar cada vez mais espaço na Terra.

A despeito de seus esforços, não demorou um instante para que o bicho fosse tudo.

 

Conteúdo, continente

a Virgílio

Quando os gregos começaram a brotar daquela grande escultura, já desembainhando as suas espadas, os troianos ainda seguiram inertes por um instante, estarrecidos com a beleza monumental do cavalo. Para eles, era impossível que algo tão belo fosse outra coisa que não um presente.

Esse instante foi decisivo para que os homens ali escondidos conseguissem incendiar a cidade, o que nos conduz à moral da história: mesmo quando não se pode ver através da beleza, é sensato presumir que ela contém outra coisa além de si mesma — algo sempre na iminência de vir à luz.

 

Do saneamento básico

a Milan Kundera

Para a merda, não existe bala de prata: apesar de orgânica, a merda não é viva, portanto, não pode morrer, mesmo que esteja a andar entre nós.

A única solução para a merda é a descarga, que a envia para seu destino por vocação, o esgoto — de resto, um ambiente de controle.

Nunca, porém, se deve esquecer: escorra para aonde for, a merda sempre estará lá. (Moral da história: quem tem cu, tem medo.)

 

Sinais

a Samuel Beckett

“Como iniciar o fogo, se é o incendiário quem precisa queimar?”, pergunta o artista, caminhando sobre brasas.

“Você não está caminhando”, responde a criança.



Ewerton Martins Ribeiro

Nasceu em 1981 em Belo Horizonte, Minas Gerais, no Brasil, onde vive. Além de escritor de ficção, é jornalista e servidor da Universidade Federal de Minas Gerais. É mestre (2015) e doutor (2021) em literatura pela Faculdade de Letras da UFMG. Parte da pesquisa de seu doutorado, que resultou em uma tese sobre autoficção que é simultaneamente uma obra de autoficção, foi realizada na Universidade de Coimbra, em Portugal, entre 2018 e 2019, subsidiada por bolsa oferecida pela Fundação Calouste Gulbenkian. Publicou A Grande Marcha (editoras Circuito e e-galáxia, 2014), novela que tem como pano de fundo os protestos políticos brasileiros de junho de 2013, e o infantojuvenil Ficções do minidicionário ou A Guerra Secreta dos Insetos (editora Urutau, 2022), além de contos em revistas e suplementos literários. Venceu a edição de 2018 do Prêmio Literário Cidade de Manaus na categoria Ensaio sobre literatura.




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