Somente é possível adentrar sozinho a literatura, mas para adentrá-la sozinho é preciso também receber ajuda.
Karl Ove Knausgård
Breve fábula
a Esopo
Era uma vez um animal que só se movia no espaço, nunca no tempo.
Tão cedo percebeu sua sina, tratou de locomover-se o mínimo possível, já que em todo lugar a que ia, permanecia para sempre, o que o levava a ocupar cada vez mais espaço na Terra.
A despeito de seus esforços, não demorou um instante para que o bicho fosse tudo.
Conteúdo, continente
a Virgílio
Quando os gregos começaram a brotar daquela grande escultura, já desembainhando as suas espadas, os troianos ainda seguiram inertes por um instante, estarrecidos com a beleza monumental do cavalo. Para eles, era impossível que algo tão belo fosse outra coisa que não um presente.
Esse instante foi decisivo para que os homens ali escondidos conseguissem incendiar a cidade, o que nos conduz à moral da história: mesmo quando não se pode ver através da beleza, é sensato presumir que ela contém outra coisa além de si mesma — algo sempre na iminência de vir à luz.
Do saneamento básico
a Milan Kundera
Para a merda, não existe bala de prata: apesar de orgânica, a merda não é viva, portanto, não pode morrer, mesmo que esteja a andar entre nós.
A única solução para a merda é a descarga, que a envia para seu destino por vocação, o esgoto — de resto, um ambiente de controle.
Nunca, porém, se deve esquecer: escorra para aonde for, a merda sempre estará lá. (Moral da história: quem tem cu, tem medo.)
Sinais
a Samuel Beckett
“Como iniciar o fogo, se é o incendiário quem precisa queimar?”, pergunta o artista, caminhando sobre brasas.
“Você não está caminhando”, responde a criança.