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Não voltaremos juntas para casa

Foto: Miller Eszter



2023-02-23

Curadoria de Micheliny Verunschk 

 

Ela fixava o olhar na parede branca e sua expressão coincidia com a inexistência de imagens daquela tela modesta. As crianças não tinham ideia do que se passava em sua cabeça, por isso, vinham, vez por outra, oferecer um gracejo. Naquela espera de uma palavra sua, era eu que me precipitava. É que eu pensava na minha própria infância, às voltas com o vazio do lugar e o tempo, impassível, zombando de mim com seus ponteiros lentos no relógio de parede. O querer desmedido de ter seus braços ao redor do meu corpo.

Nos últimos dias, nunca mais os velhos afagos nos meus cabelos. E eu bem que tentei, agateada, esgueirando olhares em direção aos seus dedos como aquela única trinca na parede que rumava ao teto no sorriso inútil de escapar do concreto, ir riscar constelações infinitas. Pena que ficávamos sem resposta, eu trincada. Íamos dormir assim sendo, gosto estranho na boca, lasca de tijolo, anêmicas, desmemoriadas.

Algo muito peculiar foi a perseverança que mantive para cuidar do sofrimento; guardei, por anos, a sua última mensagem. Só assim para poder chorar litros de ausência, longe do conhecimento dos outros, principalmente das crianças, porque algumas delas continuavam em dúvida sobre o seu retorno para casa. Perdi a conta das noites que passei sozinha, dor fustigante, sem piedade. Ouvia uma, duas, três, dez vezes a mesma frase daquela mensagem que terminava em diminutivo, e me diminuía de tamanho para que eu voltasse a caber em seu colo.

Por conta de algum compromisso que não me recordo, porque a gente se esquece de muitas coisas nesse correr sem fim de relógios, tomei emprestado o carro dela e encontrei o CD esquecido no porta-luvas, além da flanela cor de laranja (igual à cor de minha assinatura pueril, outra história).  I have a dream, a canção era ela e o mundo me dizia órfã. Era uma vez assim, lembro que gritei, sem a ilusão dos contos de fadas, porque neles as bruxas chegam bem perto de comer as crianças, até que acabam por bater as botas e o final sempre se revela feliz.  Tanta coisa tramada com nó apertado que só em aparição de sonho resolveria. E naquilo que foi a história da gente, a vida mostrou que era o típico caso real, posto sem solução.

“O destino é tão curioso”, e mais nenhuma palavra além dessa frase a cruzar o ar feito espada samurai. Ela sempre gostou do Japão, muito pelas sakuras, muito pelo lamen. Era afeita às comidinhas encaldadas, cheias de pormenores, como a tonelada de canja que minha avó servia para um bilhão de netos que éramos só nós quatro (seis, no máximo), naquela época. “Naquela época” foi dessas expressões que vieram morar de repente na minha boca. Mas a canja, não, essa eu fiz questão de deixar esquecida junto daquelas outras lembranças lamentosas, credo em cruz as raladas de joelho, ou a vez que enfiei o pescoço na linha de pipa recém esticada para secar cerol de poste a poste (“coisa dos desinfelizes”, era o que ela bradava a me socorrer recheada de cacos). Faz assim ó, prende essa dor em baú com sete chaves que nem adiantam de nada porque os cadeados desse tipo de tristeza nasceram enferrujados, não abrem por nada. Então canja me dizia pescoço, grãos de arroz se transformavam em barcos náufragos, e tudo boiava no oceano das lágrimas. A vida obriga a gente a engolir muita coisa a seco.

Teve a vez que assinei no alto da porta do quartinho que ficava debaixo da escada. O esconderijo, tão interessante para brincar, era morada do aspirador de pó, embora aquele era o lugar mais desprovido de poeira de toda a nossa casa. Incoerências adultas a vida tem de sobra. Falta imaginação. Era por isso que eu chegava a pensar que poderia enganá-los com facilidade. Minha assinatura era arrogante, repleta de ousadia. A primeira letra de meu nome cercada pela letra do segundo nome, aqueles rabichos com pontos que transbordavam a segurança de quando eles, empossados pelo talão de cheques, ainda que sem provisão de fundos (isso eu viria a saber muito tempo depois), ofereciam seus autógrafos. Fiz com giz de cera, laranja forte, bem marcado no capricho, isso sim eu me recordo. Flanela nenhuma apaga risco dessa magnitude.

Com mania de grandeza, não atinei para o fato de ter metido a assinatura acima da minha altura, muito acima da altura de meu irmão caçula. Foi batata!   

“Agora pode me contar por que a senhora riscou a porta?”, seus olhos penetrantes a vasculhar reações. Minha alma encolhida no canto do pé sentia agulhadas. Ela, um iceberg, e eu nunca saberia como de tão fria.

Jurei ter sido o caçula, eu jamais teria esse comportamento. Mergulhada na certeza de que a racionalidade típica de seu estado de adulteza (seria isso) a impediria de imaginar o meu grande feito, tanto pela arte gráfica quanto pela inédita interpretação dos fatos (porque mentira nenhuma tem o sofisticado devaneio da infância), revidei o seu olhar bebendo dose larga de empáfia. Causei-lhe o maior dos espantos para a glória de meu fingimento teatral.

 “Você está mentindo”, ela afirmou. Não importava, contanto que eu me safasse.

Queria saber qual era a natureza daquele pensamento que fazia os seus olhos percorrem a parede vazia por horas, dia inteiro. A mente da gente pode se perder, cansada de esperar milagre. Quer dizer, comigo era assim, tinha dores de barriga nos testes finais da escola. Mais grave foi quando me deparei com dois caroços, crescidos de forma instantânea, só podia. Doíam pra cachorro. Pedi que fosse me buscar, eu estava com câncer, tinha certeza que sim. Usei todas as fichas no telefone. Mas não chorava. Escândalos não tomam parte nesse meu feitio.

Ela me esperou bem de frente ao bazar de armarinho, aquele lugar mágico que vendia carreteis de linhas de algodão, fitas de cetim, rendas e lantejoulas, outros contos de fadas. Era dela a lata de costura, joia rara, cheia desse tipo de tesouro: botão mais bonito que o outro. Contudo, ela era direta o suficiente para desmanchar fantasias. Arrematou o assunto: “são só seus peitos, você está se tornando uma mulher”.

Doía pra cachorro perceber que o embrolho em que ela estava metida não tinha absolutamente nada de se tornar outra coisa e continuar viva. Nem teríamos lantejoulas à nossa espera, coisas de bazar. O momento era sóbrio e a minha avó tinha proibido, antes mesmo que eu nascesse, que alguém pronunciasse “aquela palavra que atrai doença” - o que não tinha lógica nenhuma diante do diagnóstico imodesto e maligno.

Não foram poucas as vezes que prometi, em resposta aos seus pedidos, afastar os crisântemos. Ela detestava o cheiro da morte. Eu não esqueceria e repetia “sem sombra de dúvida, fique tranquila”. A calma para o restante que se tornaria pó, “nada pior do que ser enterrada, trancafiada como botão na lata de costura, credo de coisa que deus me livre”.

Entre as horas que contávamos nos telefones portáteis, porque naquela outra época já não se pendurava relógio na parede, as crianças vinham para fazer qualquer besteira engraçada. Ela ensaiava um sorriso melhor do que o anterior. “Queria que eles se lembrassem de mim”, eu sabia que iriam. Perguntariam coisas, eu diria o quanto ela tinha sido dura comigo a vida toda, que não assava bolos nem biscoitos, trabalhava feito louca, e me faziam imensa falta seus olhares de ponta de faca.

É difícil de explicar a conquista de um coração. Por alguma razão obscura, os corações são labirínticos, abrigam visitantes noturnos que se embalam em cordas e gemem de dor e se metamorfoseiam em arbustos retorcidos que não deixam o chão sentir bater a luz do sol. Mofado, tantas e tantas vezes, mofado. Sabe se lá o motivo de tanta resistência amoitada no medo. Deve ser por isso que as canções de amor choram no aprender a ser só.

Ela já não me faz contar as horas, faz tempo que saiu com a roupa do corpo e quando esvaziei suas gavetas quase não encontrei mais nada porque ela era de uma praticidade infernal e queria me dar qualquer tipo de trabalho. Mas deu. Ainda dá. São horas e horas de paredes e tijolos e concreto e arbustos e labirintos e versos tristíssimos e a voz da mensagem que eu guardava sei lá por qual motivo sumiu de vez.

“Você sabe que agora não voltaremos juntas para casa?”, eu repetia por dentro, como quem consola a si mesma. Ainda assim, escrevo, para escutar a sua voz, mexer naquelas coisas do quartinho, o muito que ela ralhava, roubar os bonitos da lata de costura, usar todas as fichas telefônicas, riscar com giz de cera de cor laranja que era a fruta que ela mais gostava. Quietinha, sem fazer cena. Ainda detesto escândalos.

Ela gostaria de saber que eu aprendi a fazer pão e que isso por vezes é tão mais importante do que todo o resto de um dia cheio de horas. Eu diria do cheiro que fica na casa inteira quando se assa pão, ela me pediria para fazer um enorme só para ela comer com canja, eu faria. Seria a melhor poesia, sem verso triste, mesmo que fosse banal pão e canja. Seria surpresa eu contar que aprendi a receita com a amiga que tem idade o suficiente para ser minha mãe, mas que não é, porque ela é tão órfã quanto eu. Ela ouviria tudo com atenção, eu diria que fingimos muito bem, eu e minha amiga, horas e horas mãe uma da outra só para enganar a dor de não ter mais mãe. Ela me perdoaria dessa mentira. Isso faria minha mãe soltar uma lágrima. Ainda que fosse uma única. Certeza que sim.



Penélope Martins

É escritora e narradora de histórias. Entre as suas obras publicadas, estão: Minha vida não é cor-de-rosa, Ainda assim te quero bem, Uma boneca para Menitinha.




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