Bússola
Senti uma impressão esquisita no peito quando saí de casa nessa manhã. Achei que era por ter calçado umas botas de salto alto e de não estar habituada a andar de saltos. Tinha ido despedir-me de dois amigos portugueses que conheci em Londres, amigos com quem estive duas vezes apenas em cinco anos que vivi na cidade.
Voltei para casa a pé ainda com o mesmo desconforto no peito. A sensação era parecida à de uma mononucleose ou uma pneumonia – que eu conhecia – como se certos órgãos estivessem maiores do que deviam. Quando disse isto ao namorado ele revirou os olhos e disse que nunca sei explicar bem os meus sintomas. Encontrei-o pelo caminho e andámos juntos pela cidade, talvez porque precisávamos de nos despedir dela. Ninguém numa circunstância normal volta a pé para casa em Londres.
Só paramos de caminhar já no nosso bairro. Entrámos num bar simpático para beber um copo de vinho. Porque é que não fizemos isso mais vezes ao longo destes cinco anos? Porque é que não vivemos mais a cidade?
Quando chegámos finalmente a casa, comemos uma pizza, fomos directos para o sofá – o nosso hobby –, vimos um filme e, logo a seguir, o Bo Jack, o desenho animado sobre o cavalo deprimido. Criei muita empatia com aquela personagem: era também um actor frustrado, tínhamos isso em comum.
Estava a comer uma taça de gelado quando comecei a sentir as mãos frias, cada vez mais frias até que a mão direita ficou dormente. Pousei a taça. A dormência alastrou-se para o braço direito. Disse ao meu namorado que não me estava a sentir bem. Senti-me fraca, a cabeça quente e, num segundo, vieram-me muitos pensamentos e, também, memórias de frases que ouvi em certa altura da vida. Frases que me faziam ter a certeza de que estava a morrer. O braço dormente, a sensação no peito, tudo fazia sentido: estava a ter um ataque cardíaco. O meu coração palpitava, parecia que ia sair do corpo. Atirei-me para o chão como me lembrava de ter ouvido alguém dizer que era o que se devia fazer. Disse ao namorado que estava a ter um ataque cardíaco, que tinha de chamar a ambulância. Comecei a ventilar, a tentar que o ar não parasse de entrar, como se fosse possível controlar o que me estava a acontecer. Lembrei-me estranhamente do Salvador Sobral, pensei: se ele sobreviveu a um transplante de coração, eu também vou sobreviver ao que quer que isto seja. Lembrei-me também da Maria Rueff porque tinha lido que há uns dias tinha tido um enfarte. E lembrei-me que estava chateada com os meus primos, e achei isso uma estupidez. Realmente, a vida pode ser curta. O namorado olhava para mim enquanto explicava os meus sintomas ao telefone, ao senhor, à senhora? É engraçado que até hoje não sei, nunca me lembrei de lhe perguntar. O namorado disse-me que eu não estava a ter um ataque cardíaco. Lembro-me de olhar fixamente nos olhos dele, de não sentir nada e sentir tudo. Frase foleira, mas verdadeira. Comecei com espasmos muito fortes no chão. Ele desligou o telefone. A ambulância demorou para chegar. Os espasmos acalmaram. Fomos apanhar ar para a janela. O ar fresco sabia bem. Passado muito tempo lá chegou o enfermeiro.
O namorado abriu a porta, ouvi o enfermeiro nas escadas a perguntar-lhe: Did she had a panic attack? Era aquilo um ataque de pânico? Já tinha ouvido falar, mas nunca tinha assistido. O enfermeiro era engraçado, um afro-inglês, com um ritmo muito calmo. Tinha um objecto estranho pendurado nas calças e o meu namorado perguntou-lhe se era uma bússola. Ao que o enfermeiro respondeu: A compass, bro?, olhando-o com um ar desconfiado, mas cómico.
Um momento que deu para rir. Era um relógio. Fez-me um electrocardiograma em casa. Estava tudo bem. O enfermeiro foi-se embora e eu e o namorado rimos-nos de novo do momento da bússola. Depois, fomos dormir. Acho que não acabamos o episódio do Bo Jack.
No dia seguinte, empacotei livros em caixas, caixas que não viriam connosco para Lisboa, mas ficariam num espaço de armazenamento nos subúrbios de Londres, caso o plano que tínhamos de nos mudarmos para Amesterdão fosse para a frente. Lembro-me de observar o chão da nossa casa, de madeira pintada a branco. Gostava de o ter trazido comigo para qualquer casa onde fosse parar. Tínhamos autocolantes a dizer FRÁGIL para colar nas caixas, mas nesse dia colei um na minha testa e pedi ao namorado para me tirar uma fotografia: estava triste, mas ainda com algum desejo de performance. Empacotei sapatos e roupa. Pastas. Mais livros. No meio de papelada que estava também a empacotar, encontrei um papel referente ao aborto que fiz. Reparei na data: 29 de Novembro de 2018. Tinha feito exactamente um ano no dia anterior.
Esperar
Trufas mágicas em Amesterdão
O namorado viu cores, árvores a sorrir
eu não vi nada. Só descansei quando paramos
para comer batatas fritas.
O sexo no dia anterior tinha sido diferente,
Senti mais. Porque é que não sinto sempre dessa maneira?
A minha mãe estava na cidade também
Fizemos uma sesta no seu quarto de hotel
antes de ir ver o Benfica jogar com o Ajax,
Perdemos o jogo.
Comemos bifes antes ou depois do jogo.
Já não me lembro. Comemos panquecas também
a certa altura. Soube tudo bem.
Achei que o período estava para vir.
De volta a Londres o café sabia mal
As minhas maminhas estavam mais bonitas.
Achei que o período estava para vir.
Comprar testes de gravidez em Londres
é mais fácil do que em Lisboa,
é como ir ao supermercado,
não é preciso verbalizar o que se quer.
Sempre que fiz um teste de gravidez
e o resultado foi negativo, senti alguma tristeza.
É estúpido porque em nenhuma dessas vezes
queria ou podia estar grávida
Mas há qualquer coisa de poderoso
em imaginar os dois tracinhos a aparecer.
Desta vez não precisei de imaginar
Lá estavam eles. Era dia das bruxas.
Antes de ligar ao namorado
fui para o computador
ver como se fazia um aborto em Londres,
como se fosse diferente de noutra cidade.
O namorado disse que quando lhe liguei
sentiu que eu tinha algo de estranho
ou diferente para lhe dizer. Afinal
ele percebe bem os meus sintomas.
Liguei ao médico de família, tive vergonha de dizer
que queria marcar para fazer um aborto
Marquei uma consulta normal.
Lembro-me de ir ao hospital duas ou três vezes,
consultas relacionadas com o tema.
Na sala de espera, um programa sobre
remodelações de casa a dar na televisão.
No dia a seguir o episódio seguinte,
não me lembro de como ficou a casa,
mas gostei de ser distraída por aquelas pessoas.
Depois a médica a perguntar
se queria anestesia geral ou comprimido.
De um modo ou de outro não
me preparou para o que vinha aí.
Voltei lá no dia seguinte para me enfiarem o comprimido
pelo pipi acima. Alguém que ainda diz pipi, pode ser mãe?
A enfermeira perguntou se queria ser eu a fazer.
Disse-lhe que não.
Cobarde. Não quis ser responsável pelo o que ia acontecer.
Eu, o namorado, num uber para casa.
Ficamos à espera de que algo acontecesse.
Comigo uma caixa de comprimidos
Para atenuar as dores.
Eu no sofá à espera,
o namorado em teletrabalho na mesa de jantar.
Quem visse de fora parecia só um dia normal.
Pensei nisso na altura.
Começou. Pareciam dores de período a multiplicar por dez, por cem?
A indicação era sentar na sanita, aguentar e esperar.
Esperar esperar esperar esperar já estou farta
desta palavra.
Lembro-me de ficar nua,
de me doer a barriga, de gritar.
Do namorado pedir-me desculpa.
Num momento de grande dor e desespero de gritar
pela minha mãe. Não imaginava que ainda seria possível
saírem da minha boca tais palavras
Às vezes sinto que a minha mãe acha que não gosto dela.
sei que ia ficar um bocadinho feliz de saber que gritei por ela.
Não sei quanto tempo durou,
Mas de repente ploq, saiu.
Não consegui olhar muito bem,
Não sei se puxei eu ou o namorado o autoclismo.
Que horror, puxar o autoclismo. É assim e já está?
Lembrei-me da minha gatinha em Lisboa.
Quando foi mãe e teve dois gatinhos
um nasceu morto, ainda não desenvolvido,
foi para o lixo.
A seguir vomitei e fui para a cama.
Estive 8 semanas grávida.
Estava viva, saudável
Tive maminhas finalmente,
Comia tudo que me apetecia e
Não comia o que não me apetecia
Gostei de sentir que não comandava o meu corpo
(coisa que vim a odiar assim que tive o primeiro ataque de pânico).
Mas não queria ser mãe, não ainda.
Depois do aborto a rapidez com que o meu corpo
voltou a sentir-se normal foi estranha.
Não havia dores, nem cicatrizes à vista.
As maminhas voltaram ao seu tamanho normal instantaneamente.
Deitei finalmente fora o teste de gravidez positivo.
Tinha ficado” esquecido” numa bancada da cozinha
este tempo todo.
No dia a seguir estava nas aulas, no trabalho.
A correr de um lado para o outro
em busca de uma vida melhor
para nunca mais ter que voltar a
puxar o autoclismo daquela maneira.
It’s so cold in Alaska
Começo a escrever a parte final deste texto no dia 29 de Novembro de 2022, tentando assim dar algum sentido à minha vida, às coisas que me vão acontecendo.
Regressei a Lisboa uma semana depois do ataque de pânico em Londres. Depois, voltei a ter mais dois ataques de pânico em Portugal, os dois em casa da minha mãe, os dois enquanto víamos um jogo de futebol. Foi assustador para ela, mas eu já sabia que não ia morrer. Não chamamos a ambulância. Tive outro ataque de pânico em Paris, quando passei lá uma temporada, a fazer babysitting aos filhos de uma amiga.
A uma dada altura deixei de ter ataques de pânico, mas a dormência que tinha sentido no dia 29 de Novembro de 2019 não passava. A partir dessa data, todas as noites, quando chegava a casa, sentava-me, tentava relaxar, mas começava a sentir, primeiro, a mão dormente, depois, o braço. A dormência não evoluía para o resto do corpo, mas não se ia embora. Durante quase três anos, todas as noites senti o braço direito dormente e não conseguia pensar em mais nada.
Durante esses três anos tentei melhorar. Fui à psicóloga. Fiz desporto. Fui a médicos. Fiz hipnose. Fui também à bruxa. Entrei numa espiral, onde esta sensação que se manifestava mais à noite passou a tomar conta do meu dia também. Li livros sobre o cérebro. Vi demasiadas ted talks de pessoas que tinham ataques de pânico. Estava deprimida como o Bo Jack. Acabei por ir ao psiquiatra. Não queria mais sentir aquela dormência no braço. Queria ser medicada, se fosse isso o necessário. Demorou um pouco para acertar na medicação, mas durante uns meses funcionou.
Até que, recentemente, à noite, recomeçaram a aparecer as dormências e as sensações que já estavam quase esquecidas. Quando me sinto mais desesperada imagino-me a cortar o braço, mas depois pergunto-me se as dormências apareceriam noutra parte do corpo e desisto dessa narrativa.
Mas a narrativa da qual ainda não me consegui desfazer é a de achar que isto é um castigo pelo facto de ter feito um aborto. Talvez os meus pais não me devessem ter posto numa escola católica, só porque era perto de casa. Os meus pais que, com a minha idade, já tinham três filhos. Talvez no lugar deles, também eu tivesse colocado a filha na escola perto de casa, independentemente de ser católica ou não.
Muitas vezes penso que todas estas dores, esta tristeza, esta depressão, estas dormências só passarão no dia em que for mãe. Como se tivesse de compensar um acto mau com um acto bom. Embora eu saiba que não fiz nada de mal, o meu corpo parece ter outra opinião.
Não sei se algum dia voltarei a sentir-me como antes do dia 29 de Novembro de 2019, nem tenho a certeza se um dia serei mãe: Tenho a certeza, sim, de que se hoje engravidasse não ia puxar o autoclismo, apesar de ainda ter menos dinheiro, menos trabalhos, menos convicções do que tinha em Londres.
Há uns tempos, por impulso, fiz a minha primeira tatuagem. No braço direito, claro. Tatuei uma frase de uma música que gosto muito dos Velvet Underground. Diz: It’s so cold in Alaska. Achei que se adequava à situação e ao meu braço. "Alaska", na canção, é a alcunha que dão a uma rapariga chamada Stephanie. Alaska não tem medo de morrer. É daquelas músicas que cada pessoa tira o significado que quer. Para mim é sobre uma rapariga forte, mas insatisfeita, com muitas questões, que pensa talvez demasiado, mas no fim It’s all in her mind. Uns dias depois de fazer a tatuagem fui fazer escalada num ginásio e assim que entrei começou a dar essa música. Senti-me num filme, era como se a vida me estivesse a dizer que estava no sítio certo. Como se houvesse uma bússola, que mesmo escondida, nos fosse indicando o caminho. A compass, bro? Gosto quando as narrativas têm uma conclusão.
No outro disse à minha psicóloga que gostava de dar o nome Alaska à minha futura imaginária filha. Ela disse que não poderia dar um nome tão frio a alguém que me ia dar - e eu a ela - tanto amor. Ela tem razão, mas continuo a gostar do nome.