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Ela só quer aparecer



2023-04-06

Rascunhos sobre o corpo 1: da discrição das asas

No site de compras, chama atenção uma pequena observação, logo após as especificações de fabricação, material, altura, capacidade, diâmetro, modo (girável e estático), instruções de instalação e garantia de segurança, já que se trata de material esportivo. “Tutti i nostri prodotti sono confezionati in una confezione discreta”. 

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Eu passava por uma dura crise pessoal quando cismei que tinha de fazer alguma coisa com meu corpo. Não pensei muito sobre isso à época e devia estar mesmo bastante perturbada quando me matriculei em um galpão de Crossfit. Era moda, as pessoas pareciam gostar, os praticantes eram bonitos, cheios de energia e ficava perto do apartamento onde eu morava. O galpão tinha cheiro de suor e urina, as pessoas falavam inglês embora parecessem todos italianos, realmente tinham “foco”, ninguém demorava o olhar em ninguém e todos gemiam alto, o que era absolutamente compreensível. 

Fiz duas aulas. Da primeira, saí cambaleante para me sentar no meio fio em frente e chorei. De exaustão, confusão mental, vergonha. Não conseguia dar mais um passo. Sempre gostei de ser desafiada fisicamente, sinto prazer em testar esses limites, tenho resistência invejável para uma fumante da minha idade, algum orgulho e pouquíssimo juízo. Só isso explica ter resistido até o fim daquela hora terrível. 

Voltei pelo ascendente em escorpião e porque não tinha entendido nada, as pessoas faziam aquilo, eu podia fazer também. Lembrei de ir ao banheiro antes de entrar, pensei que deveria me esforçar para fazer amigos. Mas ninguém estava ali para isso e levei outra surra. Saí humilhada, com as pernas tremendo e vontade de vomitar. Não era aquilo o que eu estava buscando na névoa daquela crise, aos 40 anos. Voltei empurrando a bicicleta como se tivesse sofrido uma violência ou um acidente. Nunca tive tanta certeza de estar no lugar errado na vida. E eu já me sentia estrangeira o suficiente. 

Questionei, profundamente, onde era o lugar certo. Ainda faço isso. 

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Quando minha analista marca que falo do meu corpo na terceira pessoa, sinto um mau pressentimento. Mas, talvez, eu não seja a única mulher que experiencia o próprio corpo assim, como “ele”. Na medida em que um corpo de mulher nunca teve paz. Em que o corpo, “ele”, é sempre condição, ou impeditivo, de fala para nós. Em que nossa autonomia sobre “ele” é relativa e questionada. É difícil me referir ao corpo como “(m)eu” quando não são, de fato, minhas, as regras. Manuais, interdições, leis, críticas, pecados, preconceitos, tudo incide sobre esse corpo que, implacável, segue conforme sua natureza insubordinada mesmo que a mulher não o seja. Quando sangra, enquanto gera, ao estabelecer seus ciclos, quando produz o leite dos filhos que pariu, sempre que deseja. Insubordinado, ainda, quando não faz nada disso. No mundo em que vivemos, quando de-mulher, o corpo é sempre um insurgente. 

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Em uma tarde mais angustiada, digitei no Google Maps “studio di danza”. Tinha de ser perto de casa e o endereço mais conveniente, menos de 10 minutos a pé, se chamava Vertical Dolls. A página era ilustrada pelo desenho de uma mulher pendurada em um “palo”, como é chamada aqui a barra vertical usada no Pole Dance. 

Aqui devo fazer uma pequena digressão para explicar que cresci em ambientes onde quase tudo relacionado à sensualidade era considerado vulgar. O corpo deveria ser protegido de olhares e invasões, nada muito curto, justo, transparente, extravagante. “Você não precisa disso”, costumavam nos dizer, como se nosso modo de estar no mundo fosse apenas utilitário e sempre endereçado aos homens. Às vezes, bastava estar bonita, mais alegre ou confiante para ouvirmos que a mulher em questão estava cometendo a grosseria de “querer aparecer”, outra expressão muito usada e sempre contra nós. Ou quando era engraçada, simpática ou assertiva demais. Quando bebia demais, dançava demais, chorava demais, tentava morrer. É feio. Mulher não pode querer aparecer.

Um contrassenso, já que aparecemos tanto. Para entreter, receber, enfeitar, aumentar a audiência, vender de pastilhas para dor de garganta a apartamentos decorados. E aparecemos mesmo quando não queremos, não é preciso decote, não é preciso sequer seios, para que toda menina aprenda, muito cedo, que a atenção está antes no seu corpo do que em qualquer coisa que ela tenha a dizer. Muitas de nós atravessamos a vida protegendo esse corpo de olhares, invasões, agressões e maledicências. Isso nos aparta dele. Não importa a forma ou a idade, ele estará sempre exposto. Mas a mulher, não. Essa deve dar um passo para trás e ficar quieta, o patriarcado não gosta de mulher que quer aparecer. Eventualmente, algumas de nós entraremos na cota. Das outras, o sistema quer apenas o corpo a serviço. 

E, então, se pode passar a vida nutrindo, cuidando, protegendo, se movendo em um corpo com o qual nunca se terá intimidade. Talvez tenha sido esse o chamado do meu corpo naquela temporada difícil. Um retorno à intimidade. E a intimidade com um corpo depende da expressão desse corpo. 

Mas nada disso pensei quando fui de bicicleta até o Studio. Naquele outono, fazer uma aula experimental de Pole Dance parecia só uma molecagem desesperada minha. 

Sempre associei a beleza a uma ideia de liberdade, talvez por isso a visão daqueles corpos em dança, suspensos, desenhando o ar, tenha me encantado tanto. O que cada mulher produzia ali era raro porque feito à mão, com o tecido das possibilidades costurado à graça de cada uma. A liberdade que me inspirava não era apenas pelo caráter aéreo da dança, mas pela atitude desafiadora de corpos tão diferentes. Que, contracenando com o palo, não são corpos de mulheres, mas os corpos das mulheres. O corpo delas. Elas. 

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É muito difícil. O Pole exige flexibilidade, técnica, equilíbrio e força. Tinha tudo para dar errado. Flexibilidade era o que me tirava das primeiras filas do balé; a única técnica que fui capaz de dominar na vida é a da caipirinha; equilíbrio não é um significante que se atribua à minha pessoa e a força da qual me gabo, na maioria das vezes, é apenas minha teimosia de instalar as estantes ou pintar sozinha uma parede. Depois de conseguir realizar cada movimento, é preciso repetir e repetir até que pareça natural, leve e simples mesmo desprendendo a força de 15 búfalos. 

E tem a sensualidade. Com música e intenção, toda dança é sensual. Mas, embora chineses e indianos pratiquem acrobacias em mastros verticais há séculos, foram os espetáculos de burlesque da década de 1950 e, depois, as boates de stripper que popularizaram o Pole Dance. É inevitável associar certa carga erótica à dança mesmo quando essa não é uma preocupação da bailarina.

Quando comecei a dançar, notei o estranhamento de alguns amigos, tem gente que ainda cora quando conto. No imaginário de muitos, essa não é uma escolha de mulher séria. É coisa de puta, no sentido amplo que o machismo dá para o termo e que inclui toda mulher à vontade no próprio corpo e minimamente livre na expressão da sua sexualidade. Tem uma parte importante da experiência feminina que nos é interditada porque só acessamos no terreno do que eles chamam de “puta”. 

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Lembro que no primeiro dia fui embora rindo da minha ousadia e pretensão de fazer aquilo. Voltei porque cada uma das mulheres que vi voando me dizia, com a diversidade, alegria e potência de seus corpos, que eu também podia. Além disso, as experimentações lúdicas com o palo me despertavam uma memória de prazer do corpo infinito da infância. Uma alegria que não tem linguagem que exprima, não por ser desmensurada, mas por ser do indizível da carne. E, para além de tudo, aquele que é o objetivo final de toda dança. O dom de todo corpo quando livre. Teria voltado só por isso: produzir beleza é uma ambição decente.

A caixa chegou no dia certo e nada indicava seu conteúdo. Eu fiquei feliz. Era um palo e também eram asas. Em una confezione discreta, conforme tranquilizou o fabricante. 



Juliana Monteiro

É jornalista e escritora, tem dois filhos e mora em Roma.




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