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Mulheres tramando fios e formas

Foto: Quipus, da obra de Cecilia Vicuña



2023-04-11

Os quipus da artista chilena também têm algo a dizer ao espectador de hoje que, ao interagir com os fios, ouvindo o som da floresta, a música andina e alguns recitativos, tem contato com uma cultura e com uma flora ameaçadas de desaparecer.

 

As mulheres vêm, aos poucos, ocupando o espaço que lhes cabe nas artes. No ano passado, a francesa Annie Ernaux, com suas narrativas centradas em experiências pessoais que refletem a questão feminina, foi a vencedora do prêmio Nobel de Literatura. Outras mulheres têm se dedicado também a relatar suas vivências, como mãe, esposa, dona de casa ou trabalhadora (às vezes tudo isso junto) em poemas, romances, performances etc. Dentro dessa temática, que parece ser a tônica do momento, e na qual elas têm lugar de fala, as mulheres vêm chamando a atenção, não necessariamente em razão de ousadia estética, mas pelo fato de seus trabalhos serem vistos talvez como um “estudo de caso”.

A história é outra quando elas ousam esteticamente e deixam a temática abertamente feminina em segundo plano. Neste caso, seus trabalhos entram, diria, no espaço “reservado” aos homens e, na disputa por um lugar ao sol, as mulheres acabam sendo colocadas à sombra. A historiadora de arte britânica Katy Hessel lembrou recentemente que “apenas 1% da coleção da National Gallery é feita por mulheres”. A National Gallery, em Londres, não é uma exceção, e a situação se repete em muitos outros museus e galerias na cidade e mundo afora.

Vez por outra, contudo, as mulheres ocupam espaços importantes e centrais na arte. Em Londres, onde a porcentagem de mulheres em um dos museus mais importantes da cidade é ínfima, é curioso observar que, neste momento, três instituições de grande prestígio vêm dando destaque a obras de mulheres: a Tate Modern, a Whitechapel Gallery e a Serpentine Gallery.

Na entrada principal da Tate Modern, estão expostos dois conjuntos de quipus gigantescos da artista e ativista chilena Cecilia Vicuña. Os quipus de Vicuña são esculturas aéreas feitas de fios de lã inspirados na cultura andina, que sempre os usou como uma forma de linguagem. Os quipus da artista chilena também têm algo a dizer ao espectador de hoje que, ao interagir com os fios, ouvindo o som da floresta, a música andina e alguns recitativos, tem contato com uma cultura e com uma flora ameaçadas de desaparecer.

Na Whitechapel Gallery, que já abrigou Helio Oiticica e outros neoconcretos, o destaque é a exposição Women Artists and Global Abstraction 1940-70 (mulheres artistas e a abstração global 1949-70). Na primeira sala, chama a atenção uma tela enorme da inglesa Helen Frankenthaler, mas logo em seguida o espaço é das latino-americanas, entre elas, a argentina Marta Minujín. Interessante observar que, se não fosse por algumas poucas fotos da performance “Arquiteturas biológicas”, de Lygia Clark, numa sala dedicada aos “corpos abstratos”, o Brasil não estaria representado. Tomie Ohtake, nascida no Japão, mas que desenvolveu sua arte em São Paulo, se encontra na seção dedicada às abstracionistas asiáticas; já Yolanda Mahalyi e Fayga Ostrower, nascidas na Romênia e Polônia respectivamente, mas radicadas no Brasil, estão entre as europeias. Obviamente, teríamos muito a contribuir com a exposição se os curadores lançassem um olhar sobre a arte indígena, por exemplo, que é abstrata e geométrica desde sempre.

Por muito tempo, as artistas abstracionistas não foram reconhecidas, ou o foram apenas por serem companheiras de outros artistas, esses sim, famosos, como Jackson Pollock e Willem de Kooning. Vale lembrar ainda que elas não dialogaram somente com a obra de homens artistas, já que muitas buscaram inspiração em suas precursoras, entre outras, as inglesas Geogiana Houghton e Alice Essington Nelson, e as russas Olga Rozanova e Liobov Popova.

Finalmente, a Serpentine Gallery traz a obra da artista afro-americana Barbara Chase-Riboud, que, de certa forma, dialoga com a obra de Cecilia Vicuña. Além de dar voz a minorias, principalmente com suas esculturas que homenageiam figuras centrais na luta contra o racismo, como Malcolm X e Mandela, Chase-Riboud também trabalha com fios, numa tessitura muito semelhantes aos quipus da artista chilena. Os espectadores, contudo, não podem interagir com os fios da artista afro-americana, que ora sugerem entranhas do corpo, como o aparelho digestivo, ora flutuam leves carregando magicamente estruturas pesadas de bronze.   

As três exposições são um passo importante para dar visibilidade a essas ousadas artistas.



Dirce Waltrick do Amarante

É ensaísta, tradutora e escritora, professora de Artes Cênicas e do Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina. Autora, entre outros livros, de Cem encontros ilustrados, Ascensão: contos dramáticos, Para Ler Finnegans Wake de James Joyce e James Joyce e Seus Tradutores. Organizou e cotraduziu Finnegans Rivolta para a editora Iluminuras. 




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