Imagem 1682288269.jpg

Interminável



2023-04-23

Da série "Isto não é um anel"

Interminável

... a literatura é o registro do nosso descontentamento.

Virginia Woolf.

 

Certo tipo de sonho me atormenta. Uma tarefa comum estica-se ao infinito, sem se dar por terminada. Na última vez de um sonho desses, eu lavava louça. Mas pode ocorrer com fazer malas, dar aula, entrar no avião. Estou lá, me empenhando de forma devida, e dou voltas, retornando ao mesmo ponto, continuando a fazer. Tomava tal circunstância como denúncia do tempo roubado à escrita, labirinto impeditivo do desejo. No entanto, dessa última vez, ao acordar, mãos molhadas de água e detergente, percebi o engano. Escrever é o interminável.

Para Virginia Woolf, “a literatura é o registro do nosso descontentamento”. Não somos uma espécie contente com seu destino. Escrever, desde que a tecnologia para tal se fez presente, mostra-se como tarefa natural do humano. Não é natural, e não termina. Como lavar louça, ou catar grãos e frutas, outrora.   

Corolário de escrever, riscar é um dos itens mais difíceis no ato de escrever. Na vida de quem começa a escrever desfazer-se de um texto, pode representar forte perda. Identificado como cria, o texto a ser eliminado – da redação escolar, da tese, do texto literário – punge como abandono, parte arrancada de si. Apenas o amadurecer na escrita permite que se lance com mais tranquilidade o texto excrescente à cesta de lixo ou à volatilidade do digital. Ainda assim, muitas vezes é insuportável desfazer-se do que foi escrito, ou contentar-se com o fim da empreitada. Raros os que riscarão, alma limpa, o quisto e a sobra. Pois se é justo o quisto, muitas vezes, que marca presença sob a pele do texto e dá a ele a própria condição. Demanda talento e experiência reconhecer o bom do malquisto. Talento, experiência e uma precisa qualidade de cegueira que leve a autora a nada ver senão o próprio tear e a trama à frente ou aos fundos.  

Na contramão de um senso comum, sempre tive muito prazer em revisar, cortando ou substituindo o escrito. Mesmo ao dialogar com revisores de minha obra – ou como está na moda – preparadores de texto (em que diabos consistirá isso, senão ajustar o texto a um nível mediano de compreensão?). Não busco polêmica. Revisores prestam bom serviço, inestimável, algumas vezes. Há alguns porém (sem vírgulas) que são puro desserviço. Exercem o ofício aprisionados aos manuais, dando não pouco trabalho a autoras mal-intencionadas, ao trocar a regência real, vívida na língua, por outra, prescrita em consultório.

Mas não é a isso que quero me ater. Comecei com o sonho, fui à tarefa sem fim, cheguei ao riscar, inerente ao ato de escrever. Ao prazer de fazer de novo, dar outro curso à palavra, ao desenho, à narrativa. Contar de novo a história e dessa vez acertar? Não é a grande ambição humana? Reencarnar outra e outra vez para aprender como viver e ganhar a libertação do que se repete? Contar de novo e de novo a história, para o lobo tornar-se um velho conhecido que não mais nos ameaça? Terminar um livro, um filme pela mesma forma de seu começo, a mira na cauda de Ourobouros e alcançar não o eterno retorno, mas no desencaixe entre cauda e cabeça lograr o traço que enfim atenda ao desejo? É o que minhas suspeitas apontam estar latente na magnífica narrativa visual Cena de rua, de Ângela Lago. 

É na falha que escrevemos, nas fendas do real, e isso não é nenhuma novidade. Ao escrever, assumimos o risco de cair na fenda e lá terminarmos como o fóssil que, feito retalho, move Bruce Chatwin até a Patagônia e ao memorável livro de viagem que deixou: Na Patagônia. Desculpa do autor para fazer a viagem às terras do hemisfério Sul e escrever o livro possível. Memorável. Pois também eu fui atrás, não do retalho fóssil, mas dos relatos de amigas que experimentaram belos e inauditos encontros naturais. Teria levado comigo o livro, que só encontrei lá: In Patagonia, edição londrina da Vintage Books. 

Na mesma Boutique del Libro, na pequena e encantadora cidade de Ushuaia, outro achado precioso: Fallar outra vez, de Alan Pauls. Um ensaio sobre escrita imperfeita. O pleno louvor ao quisto. Boa companhia, dada pelo acaso. O prefácio de Julián Herbert tem foco no revisor, em clamor contra o muitas vezes equivocado trabalho de consertar o desconcerto. (Podemos, claro, discutir os dois aspectos: a existência do acaso e a mitificação do escritor. Fica para outro texto.)

A perspectiva de Pauls assinala que revisar situa-se, para quem escreveu o texto, entre temor e estupor. O assombro da preguiça do que há por fazer (ainda e de novo) e esse terror do confronto com a criação, com o que temos de brecha e falha, vícios e equívocos. Um retorno fantasmático, tarefa de Sísifo, “picar de pedras de sentenciados”, revisar o texto literário acha-se no mesmo nível de impossibilidade que a tradução. E, no entanto, quantas coisas extraordinárias vieram justo da impossibilidade de serem realizadas.

A proposta de Pauls é ousada: como enxergar a potência da revisão autoral em relação à perspectiva de “trabalho forçado”? Proust, Joyce, Beckett exerceram a reescrita como força de criação, não voltando ao texto para fazê-lo melhor, mas para continuar o trabalho – nunca terminado. Cesar Aira não revisava porque precisar escrever outro livro. Revisamos ou não, eles, e nós, porque não se esgota o descontentamento. A louça na pia precisa continuar a ser lavada.  

A afinidade secreta do humano com a insatisfação (e o interminável fazer) faz desse estado o sintoma vital e coletivo da espécie. Algumas pessoas o manifestam mais, outras menos. Artistas – já se sabe.

“...escrever é seguir o rastro de nossos sintomas”, diz Pauls. Quem somos sem nossos quistos? Levei um deles à extração cirúrgica, recentemente. Ainda tenho na pele a cola que agora se aplica em lugar da costura de antes. A pequena bolha de sebo me incomodava por sua saliência em área visível do corpo. Em troca, uma cicatriz três ou quatro vezes maior que a antiga extensão de pele estufada. Em pouco tempo, deve tornar-se uma linha fina, pouco perceptível. Começo a pensar então nas promessas da cicatriz.



Nilma Lacerda

Nasceu no Rio de Janeiro, onde vive. Autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio, Estrela de rabo e mais histórias, Iberê Camargo: um homem valente, é também tradutora e escreve ensaios e artigos científicos. Recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio, o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil, além das distinções White Ravens, da Biblioteca Internacional de Munich para a Juventude  e Lista de Honra do International Books for Young People. Professora aposentada da Universidade Federal Fluminense, mantém na Revista Pessoa a Coluna Ladrilhos, com crônicas de talhe variado, em perspectiva lusófona.




Sugestão de Leitura


“Maravilhosa composição de carne e nervos”

  Para M.   Foi o argumento dela à minha sugestão de que se valesse de tecnologias contemporâneas para sup ...

Chagall, sua aldeia, uma tarde

Chega, e o convite entra com ela, “Vovó, vamos brincar?”. Esconde-esconde, massinha, jogo da memória, jogo da velha. Nu ...

Ainda ontem e mesmo agora

  Nas prateleiras da minha biblioteca, dois fragmentos de ladrilho hidráulico de celas do antigo leprosário da Ilha Grande ...
Desenvolvido por:
© Copyright 2023 REVISTAPESSOA.COM