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Calçadas



2023-05-01

Curadoria de Micheliny Verunschk

 

Hoje é sábado e acordei bem cedo. Assim que notou movimento, Corita me chamou no muro, negaceando um golico de café. Varri o terreiro, ouvindo a contação das novidades. Dionísio está aguado por uma coxinha que viu na vitrine da padaria Caravela. É daquelas que deixam o osso do frango à mostra, feito um cabinho. Ele ficou encantado. Corita disse que vai procurar o pai dele na segunda-feira, para que arranje dinheiro, antes que o moleque caia de cama. Depois que Cido foi embora, Dionísio anda tristinho. Calado. Engana-se quem pensa que os pequenos não percebem as coisas. Dionísio tem só três anos, mas falou outro dia que o pai foi morar com outra mulher. Morri de pena. Eu ajudo como posso. Desde que me aposentei, passo os olhos nos meninos quando Corita sai para resolver alguma pendência. Se for preciso, pego até na escola. Ela tem os garotos, mas diz que se sente só. Eu, vivo sozinha mesmo. Procuramos nos amparar.    

Corita tagarelou o quanto pôde, entre uma tragada e outra, saboreando o preto que passei a ela pelo muro, na xicrinha de asa quebrada. Contou que a perua veio entregar a cesta básica que chega todos os meses, doada pela Fundação onde Marcela estuda. Já estava tratando do almoço e reclamou porque, de novo, mandaram o feijão endurecido, que produz um caldo ralo, escuro. E o arroz de safra nova, que fica empapado mesmo se levar pouca água. Choramingou que só restava um bife pequeno na geladeira. O jeito seria bater nele com o martelinho, até que ficasse do tamanho de uma pizza.

Terminando de varrer, entrei e ajeitei a loucinha. Pelas dez horas dei um pulo na birosca, mas antes de sair, coloquei sobre o muro uma cebola que já estava brotando na vasilha. Se fatiada bem fina e refogada no fundo da frigideira com um pouco d’água, vinagre e colorau, depois da carne frita, vai ficar douradinha e pegar o sabor. As crianças comem o bife repartido. Corita, as fatias de cebola.

Comprei uma caixa de sabão da mais em conta. Em nosso pedaço custa tudo muito caro, mas eu é que não ia queimar horas de um sábado na fila do supermercado da avenida. Já basta o tempo que levei ontem, aguardando atendimento no setor que administra vias públicas. Pretendo aproveitar o fim de semana para ler bastante. Espero que a corriola não estoure o som no último volume a noite inteira. 

Encontrei dona Esperança perto do escadão. Empregava visível esforço tentando livrar uma das rodas da cadeira de Vivian que estava presa num obstáculo, e apressei-me em ajudá-la. Vivian está crescida. Foi minha aluna no pré-primário e agora cursa o quinto ano. Quando me viu, anunciou sorridente:

⸻ Olha, vó! A professora!

 Tem chovido bastante. Me dei conta de que dona Esperança não consegue segurar um guarda-chuva enquanto empurra a cadeira. Vivian, embrulhada numa grossa capa plástica, tinha o rosto respingado. Dona Esperança também usava uma capa, mas seus pés estavam ensopados. Um caminhão passou bem perto de nós. Pudemos sentir o vento produzido pela velocidade. Não é possível transitar em segurança pela calçada. Os empecilhos são assustadoramente variados. Como por exemplo, degraus. As calçadas, daqui, em algumas alturas, apresentam desnecessários e inacreditáveis degraus. É desgastante desviar das irregularidades a todo momento. O passante que conduz ou utiliza um dispositivo com rodas, se vê obrigado a acessar a rua, disputando lugar com os automóveis. E as guias, nem sempre são rebaixadas. Calçadas deviam ser muito largas e bem sinalizadas em todos os lugares do mundo.

 Além de Vivian, há outros cadeirantes e pessoas que têm a mobilidade reduzida na vizinhança. Dia desses, vi o filho da dona Albertina do sobradinho ensaiando uns passos com o andador. Depois do acidente de moto que o deixou na cama por muito tempo, está reaprendendo a andar, supervisionado por um fisioterapeuta. Reinava uma manhã bonita, com bastante sol e a rua estava tranquila. Tem também seu Menelau, que precisa do apoio de muletas desde que amputou uma parte do pé direito por causa do diabetes. Marcela usa bengala, embora sonhe em contar, um dia, com o auxílio de um cão-guia. Ela estuda no centro da cidade e a parada de ônibus mais próxima da nossa rua fica há uns vinte minutos de caminhada. Marcela já tem dezesseis anos, mas procuramos acompanhá-la ao menos até o ponto, já que, entre outros contratempos comuns à toda gente, não contamos com a segurança de um calçamento regular. Fico preocupada, com o restante do percurso, mas Marcela me garantiu que, chegando ao Terminal Central, consegue se orientar pelo piso tátil e embarcar sem muita dificuldade no segundo ônibus, que a deixa na porta do colégio. Na volta, a operação é executada inversamente. Damos sempre um jeito de esperá-la no local de desembarque. Ela protesta. Diz que conhece bem o caminho e consegue percorrê-lo sozinha. Aos poucos, eu sempre digo. Aos poucos.

O Alaor, do cinquenta e sete, levantou um cômodo no quintal há bem mais de um ano. Sobrou um pouco de areia, que ele se sentiu no direito de juntar num monte, cercar com blocos e guardar. Na calçada. Fica lá, o morro de areia velha, servindo de banheiro para gatos e cachorros, escorrendo quando chove. Além da sujeira que se espalha ainda existe o perigo de que alguém escorregue. O caldo contaminado se mistura à água da chuva. A criançada, que é carente de diversão e não perde a oportunidade de brincar, mergulha os pezinhos descalços na correnteza que se forma numa nervura do asfalto.

Temos uma creche aqui na Vila e, como diz o repórter no jornal da manhã, a circulação de carrinhos de bebê é intensa. Nos horários de pico, o risco de que ocorram acidentes aumenta muito. Quem necessita passar com carrinho ou cadeira em frente ao portão do Alaor, não consegue. Ele devia guardar a sobra de areia nojenta dentro de casa. De preferência, em cima da cama. Ou na geladeira. Se ninguém intervir, nunca vai retirar a montoeira inútil para liberar passagem. Falar, não adianta. Ele dá de ombros e o povo prefere se calar a arranjar inimizade. De mais a mais, quem deve resolver os problemas da cidade é a prefeitura. Assim pensa a maioria. Ninguém quer se indispor gratuitamente.   

Uma sujeita sem aquilo que se chama consciência largou um sofá escangalhado na esquina da Andorinhas. Todo mundo sabe quem foi, mas fazem cruz no bico.  Depois do temporal que desabou na semana passada, o traste encharcado começou a feder. Os cães sem teto que nos primeiros dias aproveitaram a novidade como leito, se desinteressaram. Não tenho ideia sobre o número de velhos sofás que já foram abandonados nessa esquina, tornando-a um ponto viciado para a desova de grandes objetos indesejados. Esqueletos de armário, estrados de cama… estruturas de guarda-roupas ou gabinetes de pia. Um cemitério de mobílias onde não há sepulturas. Os cadáveres são depositados para que se degenerem à vista de todos. Algumas vezes são cremados em cerimônias pavorosas que promovem fagulhas. Centelhas se desprendem das fogueiras e flertam com os fios condutores de eletricidade. Incêndio iminente. A impunidade é estimulante e sacos de lixo surgem ao redor dos volumes, como se os velassem. Quando morrem as fogueiras, ficam os restos. E se encaminham para os bueiros, que acabam obstruídos. Enchente iminente.  

Vivian frequenta as aulas de catecismo aos sábados. É muito animada. Gosta de acompanhar a avó à feira e tem vontade de assistir ao show de sua banda favorita. Já manifesta o desejo de ter alguma autonomia no que diz respeito à locomoção. Mas, se nada mudar, no futuro, encontrará as mesmas tribulações que Marcela e tantos outros enfrentam, uma vez que, montes inúteis de areia contaminada e arcabouços de sofás dispensados, continuarão tomando as calçadas estreitas. Os postes vão se manter nos mesmos lugares, assim como os dejetos produzidos pelos animais sem teto. E os sacos de lixo seguirão sendo depositados indiscriminadamente, a despeito do dia e horário da coleta.

O fiscal de via não pôde requerer diretamente ao órgão responsável que providências fossem tomadas em relação a árvore plantada em frente à igreja. Eu mesma o abordei e mostrei a situação. As raízes estouraram o calçamento. Ele me orientou a abrir um chamado junto ao setor. Foi o que fiz. Segundo as informações que obtive, Alaor também só poderia ser notificado sobre seu monturo se uma denúncia fosse registrada formalmente. Isso significa que o senhor fiscal de vias preenche formulários e alimenta planilhas intermináveis, mas realmente não tem permissão para solicitar que reparos sejam efetuados nos trechos que visita. Ou, para pontuar os recorrentes absurdos que assolam determinada viela, onde veículos trafegam em mão dupla, já que não há como proceder nenhum contorno. Nem para apontar que, nesta mesma rua estreita, há carros estacionados sobre as calçadas, com dois pneus sobre a guia, sendo que alguns deles já nem possuem motor. São conservados apenas pelo afeto dos proprietários, que não encontram coragem para se despedirem das nostálgicas carcaças, onde se proliferam insetos e roedores, depauperando a paisagem.   

Registrei a queixa, sob o protocolo três mil novecentos e dezoito. Por isso, passei hoje na cabina do Bolão e apostei no porco. Depois, fui à padaria e comprei meia dúzia das tais coxinhas que Dionísio está desejoso por comer. Levei uma a mais, de brinde. Convidei dona Esperança e Vivian para me acompanharem. Parece que a chuva não vai dar trégua tão cedo e elas moram bem mais adiante. Chegando no alpendre, retiraram as capas e se secaram um pouco. Gritei por Corita no muro, para que venha com os meninos. Vamos lanchar e inventar alguma moda para o almoço de domingo. Mais a noitinha, vou agarrar na leitura. 



Lilia Guerra

É autora da coleção de contos Perifobia, finalista do Prêmio Rio de literatura, e do romance Rua do Larguinho. Seu primeiro livro, Amor Avenida, originalmente publicado em 2014, foi relançado em 2022 pela editora Patuá. Também em 2022, a Patuá publicou os primeiros três volumes da coleção Novelas que escreveu para o rádio e a compilação Crônicas para colorir a cidade. Atua na área da saúde como servidora do SUS e participa ativamente de projetos que fomentam o hábito da leitura em regiões periféricas de São Paulo, assim como o estímulo à escrita.  




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