O rapazinho bonito termina de colocar suas coisas no carro enquanto conversa com a mãe. Está de mudança, saindo de casa para a universidade em outra cidade. A irmã mais velha saíra dois anos antes. A mãe é jovem, uns 40 e poucos anos. Está tudo bem. Com eles e comigo. Mas, como escreveu Quintana, sabe Deus o que é que desencadeia as catástrofes. “Umas vezes passa uma avalanche e não morre uma mosca.../ Outras vezes senta uma mosca/ e desaba uma cidade.”
Ao pegar a última caixa, ele debocha por ela ter guardado, emoldurada, uma das fotografias que ele fez. Ela justifica, comovida, que aquela foi a primeira daquilo que é a paixão do filho e ele responde, displicente, que justo por isso deviam se livrar dela. A mulher desaba na tela do meu computador, não posso ampará-la, caio também. Nesse momento percorro um sentimento que nós, as mães desse mundo, precisamos de muitas palavras, também desse texto, para fracassar ao tentar explicar. A catástrofe.
“Esse é o pior dia da minha vida. Eu sabia que ele chegaria. Eu só não sabia que você ia ficar tão feliz de ir embora. Tive uma série de marcos. Me casei. Tive filhos. Me divorciei. A época em que achei que você era disléxico. Ensinei você a andar de bicicleta. Me divorciei de novo. Consegui meu diploma de mestrado. Consegui o emprego que queria. Samantha foi para a faculdade. Você vai para a faculdade. Sabe o que vem depois? Meu maldito funeral!”
Nós sabemos que a mãe está feliz, orgulhosa e aliviada pelo filho tocar sua vida, investimos muito para esse objetivo, mas seu desapego a coloca em um lugar que não costumamos ocupar diante dos filhos. O posto desprotegido e vulnerável da mulher que somos. A frase “a época em que achei que você era disléxico” é a que me despedaça. Nela está contido o sumo da experiência espetacular e da profunda solidão da maternidade. Porque são nas dificuldades e nas dores dos filhos, nos medos que sentimos em relação a eles, na preocupação que é nosso palácio, que isso que chamam de amor materno queima. Quando nossa impotência descobre o insuportável do amor. Não há outra pessoa no mundo com quem se possa dividir esse sentir. Dói no abismo fundo da nossa intimidade, não ousamos sequer terminar de olhar para essa dor.
Uma amiga contou que, durante os primeiros meses da filha, se atormentou por não sentir o amor avassalador que lhe contaram. E que no dia em que a bebê se engasgou, sem conseguir respirar, e ela teve de entregá-la para que um estranho a salvasse, escutou a própria voz pedindo que não deixassem a filha morrer porque “eu amo ela”. E que se assustou com a violência com que amava aquela menina. “Acho que por isso cuido tanto dela, Ju. Nunca mais quero amar tanto assim”.
Assisti ao Boyhood com atraso. O diretor, Richard Linklater, se propôs o ambicioso projeto de filmar o mesmo menino por 12 anos, dos 6 aos 18. Acompanhar o crescimento de uma criança é, por si só, comovente para mim. Mal sei explicar. Até ser mãe, eu nunca havia acompanhado uma criança crescer. Nunca tive família perto o suficiente e fui uma das primeiras da minha turma a engravidar. É verdade que, antes disso, pelo menos duas amigas íntimas tiveram filhos, mas eu não prestava atenção em crianças. Meu filho foi a primeira. Eu era tão inexperiente que levei Gael com duas ou três semanas ao pediatra apavorada por ele não coordenar os bracinhos, disse para um médico perplexo que o bebê não conseguia pegar as coisas. “Claro que não, não sei se a senhora reparou, mas ele também não anda”. Nunca havia me dado conta desse desamparo. É preciso que alguém nos ame até que possamos alcançar as mínimas coisas. Coçar a barriga, puxar a coberta, espantar uma mosca da frente do rosto. O amor não é apenas nossa primeira necessidade, mas a própria condição da vida humana. Sem os penduricalhos da cultura e o verniz da literatura talvez cuidar seja o próprio amor.
Todas as crianças que vi crescer me emocionam. Hoje entendo as tias que pareciam verdadeiramente emocionadas quando diziam que eu estava crescida. Hoje sou eu que tenho vontade de apertar as bochechas dos amiguinhos dos meus filhos, das crianças das minhas amigas, como estão grandes, isso é um milagre. Do verbo mirare, maravilhar-se, assim me sinto, maravilhada.
Meu filho tem 11 anos e na semana em que assisti ao filme, no telefone, antes de desligar, disse que nasceram seus “primeiros pelinhos debaixo do braço”. Disse assim, como se não fosse nada. Respondi alguma coisa leve e desassombrada, ao meu modo. Quando cheguei em casa, não foi nosso primeiro assunto, não pedi para ver, tateando entre o interesse e a invasão da sua intimidade. Apenas quando estava acabando o banho e me chamou para falar qualquer coisa sobre cabos e internet, perguntei se queria me mostrar. E ele mostrou, orgulhoso, aquele primeiro sinal, visível, de que está deixando de ser criança. Eu devo estar deixando de ser alguma coisa também.
Uma vez, Ana me disse que aproveitasse a pré-história dos meus filhos porque a gente perde um pouco do corpo quando a cabeça ganha protagonismo e aprendemos a ler e escrever. Eu guardei isso na caixinha das ideias incompletas onde coloco as frases que fazem sentido embora eu ainda não saiba qual. Mas é verdade que alguma coisa drástica e irreversível acontece quando somos capazes de rememorar, contar, recontar, arrumar cronologicamente na nossa história os fatos da nossa vida. Talvez tenhamos de nos lembrar do que fomos para dizer que somos. Talvez por isso o menino que termina o banho na minha frente, sem saber, guarde tanto de mim. Talvez por isso a mãe do filme tenha se ofendido com o pedido do filho para deixar aquela primeira fotografia para trás.
Enquanto explicava os motivos de querer internet cabeada no seu quarto, eu olhava aquele garotinho que agora toma banho sozinho, abraçada ao clichê que diz que a infância passa rápido. Terei sido suficiente? Terei sido capaz de ensinar aquelas três ou quatro coisas importantes. Fazer bons amigos, considerar as coisas com ênfase, se importar, fazer questão, ir para gostar, não perder a piada. Ser autônomo, capaz de se sustentar e gostar da própria companhia sem perder de vista que nada na vida é mais importante do que o encontro com outro. Que a maldade é sempre meio burra e o quão frágeis e delicados podem ser os fios que nos prendem a vida. Ser apenas curioso diante da diferença. Ler literatura. Ser de esquerda. Provar tudo. Ser grato e aprender com quem se dispõe a nos ensinar. Cuidar da própria vida, deixar os outros em paz. Ter o coração no lugar certo.
São mais de quatro coisas, coisas demais, e agora ele está grande e explica que a conexão fica mais estável com o cabo, eu sento na borda da banheira, ele tira o shampoo dos cabelos, fala de um jogo que eu não faço a menor ideia do que se trata, mas não escuto mais nada, com 12 anos eu beijei de língua, ele fala que o Valério é muito bom no tal jogo e, de repente, não sei como chegamos até aqui, foi tudo ontem e já se passaram três vidas, em pouco tempo não vou saber onde ele foi e se levou o casaco e eu ainda nem terminei de contar sobre o parto.
Outra amiga relatou a discussão com a filha, uma jovem adulta, que lhe fez meia dúzia de acusações que ela apenas aceitou, sem se defender, “ela está certa, o que eu posso fazer, sou apenas uma mulher”.
Conversando com a namorada, o rapaz do filme diz que a mãe estudou, arrumou um bom trabalho, paga as contas e “basicamente, ela ainda está tão confusa quanto eu”. Eu também estou. Às vezes me pego aterrorizada pensando que, tecnicamente, sou o grande exemplo e referência maior das duas pessoas mais importantes do mundo. Eu. Essa pessoa toda escangalhada, sem medida, que trancou a segunda graduação e não consegue terminar um romance. Que chora escrevendo a coluna, passa a insônia com medo de não conseguir escrever nunca mais, que tem medo de ser uma fraude e de enlouquecer. Que ainda não chegou em lugar algum, que continua esperando a fera na selva mesmo depois de ter lido Henry James. Que, honestamente, não sabe responder a maioria das perguntas que os filhos (e todos os outros) lhe fazem e perde o trabalho, de novo, de novo, porque não é capaz de fazer um mísero backup.
Dizer que a mãe nasce com o filho é uma sacanagem. A mãe tem de aprender tudo e, muito do tudo, ela tem de inventar. Dentro de um sistema que perversamente ignora o tamanho disso que é a manutenção da perpetuação da espécie.
Isso que chamam de “amor materno” eu sei de onde vem. Não vem de deus, dos genes, nem do sangue. É uma construção. Eu gerei, pari, amamentei, ensinei a sentar, a dormir, a nomear o que se sente e o que se vê. Ensinei a usar o lápis e a faca. Investi meu tempo, meu cuidado, minhas maiores preocupações: nada pode acontecer com essa criança. E a experiência, a memória, a responsabilidade, o investimento, o cuidado. Ver crescer, conhecer, se relacionar, ajudar. Tudo isso enquanto nos casamos, estudamos, nos divorciamos, ganhamos a vaga, fazemos contas, morremos de cansaço, nos casamos de novo, enterramos um amigo, operamos o apêndice, perdemos o emprego, começamos mais uma vez. No meio do turbilhão da vida, o filho é uma certeza mais profunda do que a morte. Não me peça para jogar fora sua primeira fotografia.
No fim do pequeno monólogo que transcrevi, não é à maternidade que a mãe se refere quando diz “só achei que haveria mais”. Ela está falando da vida. O instante em que nos damos conta de que não vai dar tempo. A vida, sobretudo a vida da mãe, não dá tempo. Seria apenas triste, não fosse tão bonito. Costumo dizer para meus filhos, quando voltamos do Brasil, que é giusto o tempo insuficiente que diz que a viagem valeu.