Durante a pandemia andei muitas horas sozinha pelo bairro. Instalei uma aplicação no telemóvel para identificar árvores e plantas e entretive-me durante muitos fins de tarde com ela. Se ninguém conhecia bem o vírus ou as consequências da doença, eu, pelo menos, poderia tentar saber os nomes das espécies botânicas à volta do meu prédio. Aprendi alguns: alfarrobeira, carrasco, freixo, olaia, bordo-negundo, pilriteiro.
Nessas semanas, vi pela primeira vez malvas cor-de-rosa e chicórias de uma cor incrível, entre o lilás e o azul. Eram plantas que eu conhecia apenas como uma palavra escrita e vê-las deixou-me em êxtase. No regresso a casa, tentava entusiasmar os meus filhos com estas descobertas. Insistia muitas vezes para que saíssem dos quartos, pois apoquentava-me aquela vida de reclusão em frente aos ecrãs, mas eles pareciam estar sempre bem. Incrivelmente bem, ao ponto de me mandarem fechar a porta, quando os interrompia por uma qualquer razão. Ao ponto de passarem, inclusive, os serões no quarto, coisa que nos parecia impensável antes do início da pandemia. A pandemia acabou com duas regras importantes que tínhamos: não se levam telemóveis para o quarto, não há telemóveis a seguir ao jantar. A casa deixou de ser a mesma, mas nunca saberemos se a responsabilidade foi da pandemia, se foi da adolescência, se da combinação das duas variantes. Os meus filhos entraram no túnel da pandemia no final da infância e quando saíram já eram adolescentes (um deles quase adulto).
O bairro tem a forma de uma raqueta. Uma raqueta enorme dentro da qual se organizam as moradias, as torres e os blocos, os caminhos planeados e aqueles que ninguém planeou. A raqueta é percorrida a toda a volta por uma linha cor de tijolo onde ao final da tarde deslizam bicicletas, triciclos e alguns skates. É a ciclovia que traça o contorno do bairro, um contorno sempre impecavelmente pintado.
A imagem da raqueta não é minha. É a que se encontra em qualquer publicação onde o bairro é referido — o bairro é referido em alguns livros, porque é um exemplo de urbanismo do período modernista, quando os bairros eram projetados como pequenas células de vida idealizada, com habitação, comércio, escolas e espaços de lazer.
Quando percorro o bairro, não consigo deixar de sentir que o bairro tinha todo o potencial para ser uma coisa que nunca chegou a ser: alguém teve um sonho, sonhou em grande, mas qualquer coisa correu mal. No fundo, o bairro é como eu, como todos nós.
Os meus passeios tinham tudo para se tornar repetitivos, pois a raqueta pode ser como uma rede e prender-nos os movimentos. Porém, em cada dia, descobria um pormenor novo: o desenho da copa de um pinheiro, a cor mais escura de um caminho, uma grande porção de terra coberta de urtigas viçosas, pétalas alaranjadas a contrastar com o asfalto, um melro empoleirado na berma de um passeio. E, de quando em quando, uma bola de ténis, claro.
Parece ficção, mas é realidade: no centro da raqueta, há um clube de ténis que também funciona como escola. Portanto, dentro da grande raqueta, dezenas de pequenas raquetas varrem o ar, projetando as bolas para o campo adversário. Com frequência, estas bolas saltam as redes e vêm salpicar os caminhos de terra batida. O pó dos campos de ténis tem um tom entre o rosa e o laranja, e as bolas de um amarelo fluorescente brilham sobre o chão. Podiam ser um fruto ali caído, mas não são. Podiam ser pérolas na paisagem, mas talvez sejam demasiado frequentes para serem pérolas. De qualquer maneira, são um encontro que não nos deixa indiferentes. Uma bola amarela perdida tem sempre uma história: alguém que perdeu, alguém que ganhou, alguém que fez mal os cálculos e se excedeu na força. Alguém que terá ficado a pensar: onde, raio, terá ido parar esta bola?
Quando os meus filhos eram pequenos e saíamos para a rua, quase sempre voltávamos para casa com bolas nos bolsos dos casacos. Ainda hoje, posso apostar, há bolas em sítios inesperados da casa: uma, de certeza, junto ao contador da eletricidade onde guardávamos patins e capacetes; talvez uma outra nas prateleiras do roupeiro, onde ainda guardamos jogos, e que agora vêem a luz do dia apenas quando há visitas com filhos pequenos. As bolas de ténis podem não ser pérolas, mas assinalam os sítios da casa onde há ainda vestígios dessa infância.
Quando viemos morar para o bairro, o meu filho mais velho tinha apenas um ano. No prédio já havia outras crianças, mas nos anos seguintes nasceram muitas mais. Num prédio de oito apartamentos chegaram a viver dez miúdos, de idades próximas. Com tantos espaços verdes e zonas de lazer sonhei para os meus filhos uma infância passada na rua. Mas, tal como os arquitetos e os paisagistas que sonharam o bairro, também no meu caso a realidade não quis saber grande coisa dos meus sonhos.
Sim, os meus filhos andaram de bicicleta na rua, frequentaram o parque infantil, divertiram-se, mas longe de tudo o que eu tinha imaginado que fosse possível: jogos de pista, cabanas, escondidas, amigos para a vida . Seria muito fácil procurar razões nos ecrãs, nos horários dos pais, nas questões de segurança para nada disto ter acontecido, mas seriam desculpas esfarrapadas.
Da varanda da minha casa vê-se perfeitamente o parque infantil com a sua cercazinha de madeira e o seu chão almofadado de saibro. Como todos os parques, também este esteve encerrado durante as fases mais agudas da pandemia e, por isso, ao longo de várias semanas, as fitas de sinalização da polícia foram colocadas a interditar a entrada e a impedir as pessoas de se sentarem nos bancos de jardim ali próximos. Esta proibição talvez tenha sido das que mais me impressionaram. Como se o encontro mais simples e vulgar perdesse toda a inocência.
Mas, se os parques e jardins podiam ser facilmente encerrados, o mesmo não se pode dizer da raqueta. Espaço aberto, sem vedação nem portões, a raqueta não podia fechar-se aos passeios e, por isso, em relativamente pouco tempo, tornou-se um excelente plano B para as famílias com filhos pequenos que, desesperadas por ar livre, vinham até ali largar bolas, papagaios de papel, triciclos e bicicletas — e crianças, claro.
No final do segundo confinamento, lembro-me de passear pelo bairro e de sentir que me cruzava com vítimas da passagem de um furacão. Fechados em casa há demasiados dias com filhos pequenos, pais e mães saíam pela primeira vez à rua, cruzando olhares, confirmando que tinham sobrevivido, que tinha sido duro, mas estavam todos ali.
Mais ou menos por essa altura, um grupo cada vez maior de pais e filhos começou a juntar-se numa pequena praça que dá para a ciclovia. Vinham a meio da tarde e ficavam por ali quase até o sol desaparecer. Os pais, sentados na beira dos passeios a conversar; os miúdos a correr, a desenhar com giz no alcatrão, a procurar companhia para jogar à bola. Alguns aproveitaram a sombra do bosquedo ali próximo e começaram a intervir nele: trepando às árvores, juntando pauzinhos, fazendo montinhos de terra, mudando pedras de lugar. Alguns pais terão começado também a trazer de casa alguns materiais, pois em pouco tempo nasceu ali um parque infantil improvisado, com cordas de escalada, baloiços feitos com tábuas e até um escorrega empoleirado entre os ramos de uma árvore. O parque infantil encerrara, mas um novo, clandestino e alternativo, nascia ali, sem ninguém ousar denunciar a sua existência.
Nos meus passeios fotográficos apercebi-me do avolumar deste grupo de pais e crianças, e apercebi-me também de uma certa alegria naquele espaço, uma alegria que me deixava nostálgica e me fez pensar como tinha sido preciso uma pandemia para tantos miúdos se juntarem na rua a brincar.
Nos meus raides fotográficos à procura de plantas, passava sempre por essa praça, em alguns dias mais do que uma vez. Gostava de acompanhar o evoluir da construção dos baloiços e, uma vez ou outra, até parava para conversar com alguns adultos que conhecia vagamente. Apetecia-me ficar ali, a ouvir as conversas dos pais, a ouvir as conversas dos miúdos, a observar as brincadeiras, mas a verdade é que, sem perceber muito bem porquê, nunca me detinha por muito tempo. Os meus filhos estavam em casa, nas aulas no computador, com amigos no telemóvel e, de certa forma, sentia-me uma invasora. Uma mãe, sim, mas uma mãe fora do lugar, uma mãe fora do tempo.
Esperava, então, pelo fim da tarde, quando sabia estarmos já em plena hora dos banhos, para regressar de novo ao bosquedo. O sol chegava ali já com dificuldade, subitamente ficava escuro e, talvez por isso, quase todas as fotografias me parecem vagamente tristes. Talvez por terem sido captadas naqueles minutos antes de o sol se pôr, naqueles minutos em que se costumam sentir saudades.
Para além de encontrar plantas desconhecidas, a minha missão passou a incluir também encontrar vestígios da passagem das crianças pelo bairro: uma corda atada aqui, uma pedrinha transportada até acolá. Coisas fora do sítio, que é exatamente isso que é brincar: tirar as coisas dos lugares habituais, agrupá-las de outro modo, tomar o seu peso, perceber se dobram, se partem, se resistem.
Numa área mais próxima do parque infantil “oficial”, encontrei uma cabana construída com placas de cartão e restos de paletes de madeira. Mais tarde conheci o arquiteto da construção, um miúdo de 8 anos chamado Benjamim. Soube que era para ali que ia brincar nos fins de semana de manhã e cheguei a pensar deixar-lhe bilhetes na cabana, para iniciarmos uma espécie de correspondência secreta. Não sei porquê, não me atrevi. O mundo tornou-se um sítio muito pouco divertido e deixar bilhetes a crianças (mesmo conhecendo as mães) poderia gerar confusão.

A primeira fotografia que tirei— e pensando agora, a que começou tudo—, foi a de uma tampa de uma caixa de esgoto: um quadrado de ferro emoldurado por uma tira de cimento sobre o qual alguém ordenou uma filinha meio curva de pedras de cores variadas. No centro dessa meia-lua, restos de folhas. Num canto, uma pedra maior. Parece um desenho, uma instalação, mas talvez seja a bancada de uma cozinha ou de um feiticeiro. A superfície quadriculada escura também daria um bom fundo sobre o qual se poderiam compor diferentes imagens, usando os elementos ali disponíveis, uma cara, um mapa, talvez até uma palavra. A minha cabeça adulta cai na tentação de dar uma outra função lúdica a esta base e penso como esta é uma forma tão comum de interferir nas brincadeiras dos miúdos: propor-lhes alternativas “melhores do que as deles”. Puxar por eles enquanto brincam. Enquanto mãe, pratiquei bastante esta arte, uma arte que reconheço agora ser um pouco irritante.

Numa outra imagem, observo que alguns miúdos terão depositado pauzinhos e folhas secas num caminho aberto pelo passar das formigas. Terá sido uma distração? Qualquer coisa que as mãos fizeram sem pensar? Ou uma tentativa premeditada de criar obstáculos aos animais que passavam habitualmente por aquele caminho? Esta ideia de as mãos fazerem muitas coisas enquanto “não pensamos” leva-me a pensar de novo nos adolescentes e nos seus telemóveis. O que fariam aquelas mãos se não passassem tanto tempo a fazer scroll? Pensamos enquanto fazemos scroll? O que estarão os meus filhos a pensar, enquanto penso sobre estas fotografias que tirei?

Olho de novo para uma imagem com pedaços de terra revolta e penso que se estivéssemos num campo mesmo a sério, poderiam ser provas da passagem de um texugo ou do focinhar de um javali. Aqui, provam antes a passagem de um animal humano de pequenas dimensões, mostrando já capacidade de manipular um ramo, com o objetivo de esgravatar a terra. Mas com que função? Deixar um rasto da sua passagem? Indicar o caminho a outros? Será que brincamos apenas para nos treinar para a idade adulta? Quando vemos as crianças a brincar — e quando nós próprios nos recordamos das nossas brincadeiras— sentimos alguma resistência em aceitar esta ideia, de que brincar serve para alguma coisa. Quem brincou e se divertiu à grande pressente que há no brincar qualquer coisa que nada tem de útil, qualquer coisa que pertence apenas à dimensão do prazer.

Neste bosquedo onde se instalou o parque improvisado será certamente proibido fazer lume, mas é bem possível que algumas destas crianças trouxessem a ideia de uma fogueira dentro das suas cabeças, pois tirei bastantes fotografias a estruturas que parecem convocar essa ideia de fogo e reunião. Olho para essas imagens e penso se ainda traremos connosco os gestos desse tempo em que nos sentávamos em círculo, no chão, à volta de uma fogueira.
Brincar talvez seja esta oportunidade de experimentarmos todas as ideias, as que nos ensinaram, mas também as outras, que trazemos dentro de nós intuitivamente, de um tempo distante, mas ainda tão presente.

A certa altura apercebi-me de que as crianças pareciam fazer uma tentativa de vedar o espaço, com se dissessem: este lugar é nosso. Olhando agora para algumas dessas fotografias de cercas, pequenos muros, penso que é possível que tenha sido uma interpretação forçada e que talvez estes miúdos tentassem apenas construir paredes de cabanas, nunca terminadas, e outras coisas deste tipo. E esse é também um traço das brincadeiras quando somos mais novos — abandonamos, voltamos. Não há a exigência da persistência ou a obrigação de ser consistente. Brincar é o contrário: divagar, mudar de ideias, não ligar às fronteiras e atravessá-las quando nos dá na gana.

Em plena primavera, na semana que sucedeu a Páscoa, encontrei vários ovos de chocolate espalhados pelo bairro e atilhos de tecido colorido presos a alguns ramos. Nesses dias, juro, tive a sensação de que alguém descobrira o meu jogo e que participava nele, virando de súbito o tabuleiro na minha direção: sabemos que nos procuras, vamos deixar-te aqui pistas para que nos encontres.
Os meus filhos continuavam no quarto, portas fechadas, trabalhos de grupo por zoom, conversas infindáveis no WhatsApp.
Já eu, não sei se movida por saudades da minha infância, se movida por uma estranha nostalgia da infância dos meus filhos — que nunca pensei poder vir a sentir —, decidi continuar a seguir as pistas cá fora.
A sua súbita autonomia fazia-me sentir órfã. E a suspeita de não ter conseguido aproveitar bem o nosso tempo juntos causava-me alguma tristeza.
Por outro lado, esta vontade de seguir as pistas, esta curiosidade pelo que vem a seguir mostravam-me que esta orfandade não tinha apenas uma natureza melancólica, e revestia-se de um certo alívio, de alegria e até de entusiasmo.
A pandemia diluía-se.
A raqueta regressava à vida habitual.
O parque infantil era, aos poucos, deixado ao abandono.
As bolas de ténis continuam a salpicar o chão de um amarelo fluorescente.
O sol põe-se sobre todas as coisas.


Cabana do Benjamin