Imagem 1686038299.jpg

Pulei sete ondas e não funcionou, então pulei o mar todo



2023-06-06

Confira trecho do primeiro livro de crônicas de Carla Muhlhaus, colaboradora da revista Pessoa. A edição é da Urutau

 

 

As mulheres portuguesas têm pés pequenos. Por vezes as mãos também são diminutas. A cara no entanto é sempre grande como a fala. Saem palavras volumosas das suas bocas e frases caudalosas dos seus olhos. São detalhes agigantados, histórias ampliadas nos nós dos dedos grossos.

Os gestos. Pudéssemos fazer deles uma epistemologia e chegaríamos tão longe. Sou aquela que olha discreta tentando calcular como aquele pé pequeno equilibra o corpo inabalável de gárgula medieval.

Que base. Muita sopa de legumes, talvez. Esparregado de espinafre, alheiras. A mim sobram as olheiras, mesmo, a asma e alguma tontura do Hemisfério Norte. Vertigem de estar algures mais acima, latitude não familiar aos meus pés tropicalmente enormes.

Meu labirinto é barroco agora que vejo abaladas minhas proporções. Sou praticamente uma gigante, boneca desengonçada e molenga de tecido, mãos arredondadas sem cinco dedos, só o polegar, olhos fixos e meio perdidos, sorriso definitivo e cuidadosamente costurado por quem tinha um indicador para vestir o dedal.

Portar-se bem. Tomar a sopa. Não fumar nunca (muitas portuguesas ainda discordam). Calçar pra sempre os mesmos sapatos. Não tremer. Resistir ao frio. Resistir ao frio, caraças. Resistir.

São mulheres bravas, essas de pés pequenos. Reprimidas como todas, mas bravamente resolutas, decididas a pisar pequeno, mas com força de terramoto. Deixam mesmo um rastro de fissuras nas pedras das calçadas. Recolho os cacos soltos. Farei deles chinelos de dedo, caminharei com eles e meias de lã para encontrá-las. É provável que façamos juntas uma sopa. De pedra, sim senhora.

 

 

 

Porra, Brasil

2/12/20

 

Faz um bom tempo que jogo coisas fora compulsivamente. É capaz de já ser uma doença catalogada, não sei, não gosto de ler sobre síndromes, elas me fazem sempre achar que tenho uma ou vinte delas. Fato é que no caminho entre a máquina do estacionamento e a saída do carro, ainda antes da cancela levantar, o papelito já some, seguindo para um universo paralelo de coisas não perdidas, mas insurgentes, revoltosas, cortantes como um papel afiado dizendo que vai embora por conta própria antes de ser esquecido, porque autoestima não se vende em farmácia, afinal.

Vá se lascar, ele diz, o papel, e some dessa dimensão para horas depois rir alto daquela cena em que outro ticket tem que ser pedido na administração. São papéis que se recusam a serem jogados fora, na verdade, numa espécie de materialidade de resistência, de existência reafirmada, recusa do virtual.

Essas coisas, luminosas coisas, recusam-se a serem recicladas porque seu significado não é recheio de sanduíche, é gastronomia de alto nível espumada em sutilezas e subtextos. E é perigoso quando essas coisas começam a agir por conta própria, porque é uma reação cósmica ou, talvez, para quem acredita em unicórnios, conspiratória. Queria acreditar que é assim que outros papéis, como dissertações de mestrado ou teses, por exemplo, são desaparecidos por corte de bolsas de iniciação científica e ninguém mais dá por isso, porque não quer ter a chatice de ir até a administração do Brasil shopping.

Junto com o papelito, pesquisas em ciências humanas também seguem para o planeta das coisas jogadas fora compulsivamente, com a diferença de que, desta vez, não foi ato falho, relapso, senilidade precoce ou aquela doença também chamada de cabeça na lua (para onde também vão os papelitos). Foi ato pensado, se é que se pode chamar isso de pensamento. Pensaram lá, as coisinhas medíocres: bora acabar com o CNPq, aquela fábrica de vagabundos, bora jogar tudo fora compulsivamente, como quem larga um ticket de estacionamento no lixo, para onde também vai, nesse ritmo, o citado shopping.

Reciclar é um luxo necessário. Não jogar certas coisas fora é questão de sobrevivência, de saber encontrar a saída, o veículo, a cancela que levanta para outras ruas, outros papéis, outras dimensões da lua, outros livros como o meu livro de entrevistas e outros tantos maravilhosos que jamais seriam escritos não fossem essas bolsas. Porra, Brasil.

 

 

 



Revista Pessoa
 



Sugestão de Leitura


Um Tiro no Escuro

  Olhem para ele. Um metro e oitenta e um. Sessenta e cinco quilos. Um taco feito de madeira de freixo. Um ótimo taco. Feito &agra ...

As mãos de Ismail

  De manhã bem cedo, chegamos à cidade de areia e pedras, meu pai estacionou em frente à nova casa, É aqui, e ...

Estudo sobre o fim: bangue-bangue à Paulista

  Vila Mariana – Vila Prudente   1 A mulher acaba de sair do prédio. É professora. Tem certa idade. N&a ...
Desenvolvido por:
© Copyright 2023 REVISTAPESSOA.COM