Minha vida é hesitação diante do nascimento.
Franz Kafka
A história é conhecida. Praga, Império Austro-Húngaro, 22 de setembro de 1912. Algumas semanas depois de completar 29 anos, Kafka se senta para escrever às dez da noite e fica por ali até seis da manhã, quando se levanta com o texto integral de O veredicto nas mãos.
Desse intervalo, a única coisa de que o escritor vai se lembrar é de ter olhado para o relógio uma última vez às duas da madrugada. Disso e de ter sentido, em algum momento, as pernas enrijecidas, de tanto ficar sentado.
“Mal consegui tirar de debaixo da escrivaninha”, Kafka anotaria em seu diário no dia seguinte, em seu uso típico do alemão, a que Modesto Carone, seu maior tradutor no Brasil, caracterizaria como “cartorial”. Em outra passagem dessa mesma entrada, Kafka anota: “O apagar da lâmpada e a claridade do dia. As leves dores no coração.”
Os diários de Kafka dão a justa noção do que foi, para ele, a experiência epifânica dessa madrugada. “Várias vezes durante a noite suportei meu peso sobre as costas”, ele escreve. “Como se pode ousar tudo, como, para tudo, até mesmo para as ideias mais estranhas, há uma grande fogueira em que elas perecem e ressuscitam. Como, diante da janela, o céu se fez azul.”
Para Franz Kafka, aquele dia de 1912 fora o ponto de virada de sua vida, e ele teve a sabedoria de desconfiá-lo no momento da sua ocorrência.
Ali o filho de Hermann e Julie Kafka nascia como escritor, a despeito de todas as dificuldades de fundo psicológico que seguiria enfrentando por toda a vida; ali, junto ao homem, nascia a sua fórmula pessoal de pensar e compor ficção.
“Somente assim é possível escrever”, registrou Kafka em seu diário; “somente numa tal circunstância, abrindo completamente corpo e alma”.
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No dia seguinte, Kafka leu o conto para suas irmãs, atipicamente confiante. Um dia depois, repetiu a leitura para um grupo maior, na casa de amigos. “Perto do fim, girava a mão verdadeiramente sem controle diante do rosto. Tinha lágrimas nos olhos. A indubitabilidade da história confirmou-se”, registra o escritor no dia 25 de setembro.
A indubitabilidade da história confirmou-se. Quantos momentos como este ocorrem na vida de um escritor? Dois? Um? Nenhum, se quem escreve é alguém que, não sendo Kafka (Guimarães Rosa, García Márquez, Machado de Assis), tem uma noção satisfatória do seu verdadeiro tamanho.
A meros mortais, não raro o que resta é nos darmos por satisfeitos quando as histórias que contamos não nos impelem, como num veredicto, a nos atirarmos de uma ponte. Que assim seja. Não é pouca coisa.
Em fevereiro do ano seguinte, ao revisar as provas do conto para publicação, Kafka relembraria: “a história saiu de mim como num verdadeiro parto, coberta de sujeira e muco”. Após a limpeza, O veredicto seria publicado entre maio e junho de 1913 no anuário de literatura Arkadia. Max Brod, o amigo mais íntimo do escritor, editava o periódico para a Kurt Wolff Verlag, editora expressionista que logo se tornaria a mais importante da Alemanha.
Em agosto de 1916, Kafka vai reiterar O veredicto como uma pedra fundamental e, ao mesmo tempo, um estado da arte da sua produção literária. A seu editor, vai cravar, em um cartão postal: “Ele é dos meus textos o que eu prefiro.”
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Quando Kafka morreu, em junho de 1924, Max Brod ficou responsável por seu espólio literário. Em meio a suas coisas, Kafka havia deixado dois bilhetes, pedindo que o amigo queimasse todos os seus escritos que ainda não haviam sido publicados.
Em um deles, datado de 1921, Kafka solicita: “Tudo o que deixo para trás sob a forma de diários, manuscritos, cartas (minhas e de outros), esboços, e assim por diante, [todos esses textos] devem ser queimados sem serem lidos.” No outro bilhete, escrito algum tempo antes, o escritor já havia afirmado: “De todos os meus textos, os únicos livros que devem permanecer são: O veredicto... [...]” — e em seguida ele completa uma lista de meia dúzia de obras já publicadas, de certo modo já impossíveis de serem apagadas da sua biografia.
“Mas todo o restante do que escrevi (seja em jornais, manuscrito ou cartas)”, ele continua, “todas essas coisas, sem exceção, e especialmente as não lidas [...] devem ser queimadas, e imploro-lhe que o faça o quanto antes. Franz”. Felizmente, Max Brod, mais que um bom amigo, era um amigo com uma noção satisfatória do verdadeiro tamanho de Kafka.