“De modo que não entendo nada do que tenho visto e, enquanto aumenta a confusão, vou entendendo menos ainda. Não tenho conseguido dormir, mas em compensação também já não consigo mais ficar acordada.
Ando com grandes planos de estrangular uma criancinha, mas exijo que seja loura e que tenha os olhinhos azuis. Pois a verdade é que perdi a paciência, a coragem, a própria cara, além de ter perdido a confiança e a vontade de rever o vale e a casa em que nasci.
No mais, continuo buscando o sentido dessa vida, na intimidade esfumaçada desta sala, entre pedaços de noite e de saudade, fumando cigarros e ouvindo Bach em surdina.
E nesta estranha vigília, escondendo-me dos outros e fugindo de mim, vou vendo o tempo passar, a vida, enquanto penso que nada fiz para merecer você e, pensando em você, em mim, em todos nós,
crucificada sobre todas as saudades, humildemente, eu, às vezes, choro.”
*
Foi assim que a cronista capixaba Carmélia Maria de Souza retratou seu estado de espírito. Isso em 1968, aos 31 anos, no texto Reflexões (chatas) sobre o óbvio ululante, de seu livro Vento Sul. Obra, aliás, mais difícil de encontrar do que Marquês de Sade em livraria infantojuvenil. Foi justamente essa dificuldade o que me mobilizou a enfocar Carmélia. Chamou-me atenção também o fato dela ter falecido tão jovem, vitimada por uma embolia pulmonar, aos 37 anos.
Tudo começou numa conversa informal com um dos editores da Cousa, Saulo Ribeiro. Um autor seu, Flávio Carneiro, acabara de receber o Caboré de crônica. Propus a ele que criasse um prêmio para cronistas d’aquém e d’além Vitória.
Ninguém melhor do que uma casa editorial da terra que pariu Rubem Braga, Mendes Fradique, Danuza Leão, Carlinhos Oliveira para promover algo assim. Foi quando ele adicionou um nome à minha lista de sumidades do estado: Carmélia M. de Souza.
Confessei nunca ter ouvido falar da autora. Mas, conforme Saulo ia a descrevendo, mais aumentava meu desejo de lê-la.
O problema era descolar o Vento Sul. Nenhum exemplar de capa rasgada, nenhum PDF, nada, esgotadíssimo.
Após percorrer todas os vendedores do Estante Virtual e Mercado Livre, decidi entrar em contato com a Academia Espírito-Santense de Letras. Ali vim a trocar ideias com o ocupante da cadeira de número seis da AEL, o acadêmico Francisco Aurélio Ribeiro. Ribeiro é doutorado em Literatura Comparada, pela UFMG, e autor de diversos livros de crônica e sobre crônica. Foi ele quem, por fim, me enviou um raríssimo exemplar dos escritos de Carmélia.
Aprendi com Ribeiro que ela fez parte da geração jovem questionadora, libertária, dos anos 1950-60. A chamada geração marginal. Foram os que abriram as veredas para dar visibilidade às vozes sufocadas, como a das mulheres negras, das lésbicas, dos independentes. Hoje, a batalha é mais livre e frequente do que há 50 anos. Carmélia, no entanto, foi pioneira.
É de se imaginar o que uma atenta observadora do cotidiano de sua época - autora de crônicas como O lotação, a gorda e eu -, recriaria atualmente, com os personagens típicos da geração do celular, da violência urbana, do ignorantismo. Ridendo castigat mores sempre foi o lema dos bons cronistas.
Por outro lado, também não podemos mencioná-la sem falar em fossa. O mal do século daquela época, influência do existencialismo sartreano.
“Maysa, também capixaba, na música, e Carmélia, na literatura, são frutos desse e dessa dor de viver tempos tão amargos” – assevera Francisco Aurélio Ribeiro.
O desalento foi um dos seus temas centrais. E ela o definiu assim na crônica Teoria Geral da Fossa:
“....eu diria que a minha fossa é linda. Lírica. Poética. Profunda. Imutável. Colorida. Muito mais festiva do que revolucionária. Uma fossa assim, destas de fazer inveja ao próprio Baudelaire, que em matéria de fossa ameaçava jamais encontrar rival.”
Não dúvida: em Carmélia, até a fossa tinha bossa.
Segundo Ribeiro, a cronista escreveu e publicou muito. Para ele, Vento Sul, organizado por Amylton de Almeida, não contém tudo o que ela concebeu.
“Ela ainda não foi estudada no Programa de Pós-Graduação em Letras, da UFES, como deveria. Um dia, surgirá um pesquisador-crítico que se deterá melhor sobre a sua obra, como Jason Tércio fez com a obra de Carlinhos Oliveira. Espero viver para ver” – torce o acadêmico.
Estaria então nossa cronista relegada ao esquecimento? Considerando-se, inclusive, que o centro cultural que leva seu nome, em Vitória, se encontra semiabandonado?
Na opinião de Francisco Aurélio Ribeiro, apesar de tudo, a memória da escritora continua “nas crônicas que escreveu, nos livros que não publicou, na sua história de vida numa época de chumbo”. E aponta jovens escritoras dos novos tempos - como a conterrânea de Carmélia, Mara Coradello, próximas ao corpus produzido pela autora de Vento Sul.
Mara admite ter “amor” por Carmélia. “Todas tivemos influência dela. Mesmo as que não a leram. Ela engendrou a mulher possível a nós”.
Para celebrar o pendor pela mestra, Mara deixou Carmélia esteve aqui em casa registrado em seu livro de crônicas Armazém dos afetos, de 2013.
“Essa senhora veio me visitar, tarde dessas, depois de nosso encontro casual naquela livraria perto da Igreja Santa Rita. E já gosto dela com o fervor das melhores amigas da infância: Carmélia M. de Souza.
Herdeira da fossa de Maysa, a quem nunca perdoou por tê-la roubado um namorado, um tal de Zé Costa. Desculpe se pareço indiscreta, é que é fácil falar da vida íntima de Carmélia, ela mesma se encarregava disso, suas crônicas em primeiríssima pessoa só guardam em segredo um certo Dindi, sobre o qual há muitas conjecturas, pode ser um amigo, um amor, ou vários deles. O certo é que é uma das marcas de Carmélia essa exposição volátil de seu interior, como uma garrafa de vinho a colorir o ar com seu aroma, ou como um mar de ressaca se revirando e trazendo à tona seu humor visceral.”
Mais uma prova de que, os grandes artistas, nunca são esquecidos. No máximo, ficam encantados.
Em tempo: o concurso de crônicas da editora capixaba Cousa, me informou Saulo Ribeiro, tem tudo para medrar. Quando for lançado se chamará Prêmio Carmélia Maria de Souza.