Para quem mais, senão Mirna Queiroz?
Uma bela mulher, jovem, entusiasmada, simpática, convidativa. Representava uma editora portuguesa e chegou até mim por uma indicação de que não me lembro. Havia interesse em autores brasileiros e eu tinha um romance inédito. A conexão foi imediata. A editora fez água rapidamente, Mirna Queiroz manteve os remos na mão, fundeou âncora na lusofonia. Pessoa, a revista, nasceu para um diálogo mais que oportuno. O convite para embarcar como cronista do novo barco veio como dádiva, que acolhi mais que grata.
De minha parte, dúvida e dívida viviam em jogo duro contra a dádiva do escrever. Embora o embate corresse na surdina, por vezes afetava a rota. Batida por vento impiedoso, a letra pálida tremulava, e, murcha, descia do mastro. Discutia a situação comigo mesma, discutia com a terapeuta. Emaranhado de pontas conhecidas, a briga se dava de longe. Uma dádiva, leitura e literatura. Uma dúvida (até hoje batendo à porta), sobre força e teor do dom. A dívida com o feminino e outras obrigações sorvendo seiva.
Ao cruzar com Mirna, atravessava um mar de dúvidas, manejava o timão da dívida. Longe, a terra da dádiva. A oferta para ser colunista da Revista Pessoa de Literatura Lusófona foi bússola junto à carta de navegação. Sonhei. Um lago de calendário, um pequeno pagode chinês ou coreto clássico, bem como acontece nos postais. Sem ponte para chegar à construção. O inconsciente dava o recado. Passei da imagem de lago, coreto, pagode à ideia de pavimentar o caminho. Era o que Mirna me oferecia. Escrever quinzenalmente, em ritmo profissional, interlocução com outros autores e outras autoras, um compromisso. Colocar ladrilhos na porta da loja, depois de pavimentada a ponte.
Minha casa tem muitos ladrilhos. Sofisticados e simples. Na cozinha, nos banheiros, no espaço da churrasqueira, na varanda de entrada, nos painéis do chuveirão e do jardim no quintal. Color ladrillo a três por dois, terra cozida em paredes na cozinha, ladrilho polido, ou pintado à mão, como nos interiores de Almodóvar. Ladrilho hidráulico em alguns pisos da casa, ladrilho romano no escritório. Ladrilhos na Pessoa. Uma pessoa de ladrilhos.
Há dez anos coloco ladrilhos no mundo lusófono. Não tenho ideia exata de quem me lê. Não é assim quando se escreve? Lançamos a vara, quem sabe o peixe que morde a isca? Às vezes, o peixe vem à tona, sabe-se dele. O mais das vezes, não. Mas escreve-se. Mesmo para as gavetas. Há muito não escrevo para as gavetas. Ao aceitar o convite, ousava pedir àquela mulher, firme rocha flutuante: “Sonha-me um sonho, faz favor?”. Pedia, no sonho, que colocasse o que eu escrevia em circulação, estampasse paredes ou chão com meus ladrilhos, ajudasse a erguer a casa.
Ela assentiu. Entreguei-os, um por um. Em alguns, escavei minha genealogia, em outros patinei no cotidiano. Uns tantos trouxeram a prática pedagógica, outros mais as questões do presente. Dez anos, o teto cuidadosamente assentado sobre a construção, Pessoa buscando-se em outros mares, a voz de Ella Fitzgerald desdobra-se, redonda em meus ouvidos, moldada à memória, “Dream a little dream for me”. Pois se foi o que pedi à Mirna. E ela fez.
Na composição do painel da dádiva, ladrilhos estampam gratidões.