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Brasília, Brasil



2023-07-16

Onde meus crimes seriam de amor

Não foi a primeira vez que cheguei ao Brasil brigando. Na pandemia, meus filhos já tinham me visto aos berros, na esteira de restituição de bagagens do Galeão, com um cidadão sem máscara que me chamou de coisas que eu nem sabia que tinham virado palavrão. Os perdigotos do infeliz chovendo nos meus pintinhos. Dessa vez, ainda nem tínhamos saído do avião e eu já discutia com um grandão que achou que podia passar na minha frente, cheia de mala e criança. Pode não. Fui xingando o cara até a polícia federal, quando achei por bem (o meu) me acalmar. Os dois arregalados. Não estão acostumados. Em Roma, sou um amor. Mas, aqui, meus filhos, eu estou em casa. 

Não sei se é assim com todo mundo que vive longe da terra onde cresceu. A saber, a minha se chama Brasília e é a capital do Brasil como tenho de explicar muitas das vezes em que me fazem essa pergunta fora daqui. Parece fria, asséptica, corrupta, elitista, sem mar, sem montanhas, sem centro histórico, sem ruas, sem esquinas, sem graça, dizem os forasteiros, tanta gente não consegue se entender na cidade. Não se pode culpá-los. 

Era difícil amar Brasília nos anos 1980 porque ela não tinha sido amada antes. Meus pais não tinham infância na cidade para contar, diziam que era segura e boa para viver, duas qualidades que, se não pacificam minha inquietude hoje, tampouco convenciam meus cinco anos. Muitos de minha geração cultivaram o desejo de ir embora, tínhamos pouco compromisso, não tínhamos raízes em Brasília, não sabíamos que éramos, nós mesmos, as raízes que se faziam e que nossa vadiagem pelas superquadras e pilotis inscrevia a cidade.

Na adolescência, Brasília já era minha, mas fui perceber que eu também era dela depois de Roma, quando ser brasileira não deu conta das minhas saudades. Nunca foi do mar, como supõem os italianos sobre mim. Sinto saudade do corpo em condições ideais de temperatura, altitude e pressão. O cheiro que o vento traz do lago, minha madeleine, do ardido sem filtro do sol nos ombros, da noite fria depois do dia quente, a seca que alimenta o corpo quando a respiramos. 

Não se trata de gostar ou não de onde se vem, de considerar a terra natal bonita ou feia. Os meus filhos acham bonita. Sobretudo, acham limpa. Moderna, tecnológica, casas espaçosas, elevadores enormes. Roma acham velha, suja, cansada. Aqui comentam do céu, do verde e dos descampados do cerrado. De certa forma, eles gostam mais de Brasília do que eu. 

Para mim, desde sempre, é monótona com seus quadradinhos e retângulos e abóbodas que saem sem caule do chão, geométrica demais para cativar meu senso estético. Faltam cantos misteriosos. Parece que são sempre as mesmas pessoas nas paradas de ônibus, a mesma confusão no Setor Comercial Sul, os mesmos remendos na pista da W3, as mesmas árvores, o mesmo chão vermelho, o mesmo apartheid social, a ilusão de ordem e progresso. No entanto, há anos, voluntariamente, não vivo o verão. Quando afinal esquenta na Europa, eu passo três meses no inverno daqui. 

Em Brasília sou mais resistente, potente e disposta. Espécie nativa que não morre, mas sofre e dificilmente dá flor quando transplantada. Ao mesmo tempo, é casa de onde sempre quero fugir e para onde preciso voltar. Tem sempre uma festa, um funeral, uma mágoa que só́ se cura lá. 

Quando chego em Brasília, geralmente é junho. Até aterrissar, sou uma pessoa mais simples, de férias, na cidade onde nasci. No entanto, assim que respiro seu ar vermelho-ardido, que tem o cheiro da distância até o mar, me torno complicada. E é com um suspiro de desgosto que mato a saudade de mim. Brasília me implica. 

Porque na terra da gente os significados são todos escancarados. Sei como as coisas eram e como as pessoas foram. E a memória faz a consciência mais crítica. Quando saio de casa, posso sempre encontrar alguém com um pedaço esquecido de mim. Como tudo, como sempre, isso nunca é só bom e pode mesmo ser péssimo, principalmente na frente das crianças. “Onde eu estivesse, eu seria vista”, escreveu Clarice sobre Brasília, mas poderia ter sido eu.

Clarice também disse que Brasília é a cidade onde não encontrou lugar para chorar. Poucas vezes alguém deu borda tão polida para a angústia que sinto ao voltar. Na infância, quando precisava chorar, saía para os livros. Já adulta, saí de casa e depois da cidade, do país, da língua. Em um lugar onde ninguém sabe da gente podemos ser tristes. A estrangeiria justifica a vulnerabilidade, é sempre cheio de cantos para chorar. Volto para casa como Ulysses, também é pelas cicatrizes que sou reconhecida pelos meus. Ou talvez não seja Brasília, mas a própria terra, quando natal, que tenha sempre um pouco de “prisão ao ar livre”, como ela definiu. 

Acho que é disso que se trata.

De longe a gente se preocupa e também sofre, mas, como se diz, não podemos fazer nada. Aqui tampouco tenho tantos poderes, mas estou sempre ocupada como se os tivesse. Com a demissão de um, o namorado abusivo da filha de outro, o divórcio tumultuado de um casal que gosto, o marido merda de uma amiga, a saúde de uma outra, a minha própria saúde, já que aqui estão meus médicos que a cada vinda dizem que alguma coisa já não vai tão bem. Me preocupo com as amigas que estão bebendo muito, sobretudo com as que não bebem mais. 

De perto, estou preocupada com um vazamento de gás misterioso na casa da minha mãe e isso já tem um ano. O gás nunca parou de vazar depois da última despedida, passamos o dia abrindo e fechando o registro, já trocaram mangueira, botijão, deve ser no próprio fogão, mas, aqui, tenho de dar um jeito nisso ou a casa vai explodir amanhã de manhã. Também tenho medo de que seu companheiro caia na escada que ele sobe e desce o dia inteiro. Eu me preocupo em cada uma delas. Aqui não posso ser fraca, sou a responsável pelo mundo todo. 

Que agonia isso da angústia conter o rosto dos que amo. Fujo de onde tanto desejo voltar. Nos dias em que cada célula do meu corpo quer estar aqui é justo pela falta que sinto das pessoas que perturbam minha suposta paz. Longe delas, é difícil encontrar sentido no que faço. É por causa do amor que é sofrido partir. É por causa do amor que é doído voltar. É por amor, talvez, que um dia eu volte de vez e traga todos os pecados e circunscrições que a duras penas disfarço na outra margem do mar. Apenas de passagem, Clarice descreveu Brasília como uma cidade onde os seus “crimes não seriam de amor”. Os meus, ao contrário, são todos crimes de amor, o núcleo irradiador das minhas delinquências.

***

Eu lembro que tinha uma árvore na frente da casa da vizinha, na 703 sul. Seu tronco era dramaticamente inclinado e, pensando bem, não parecia mesmo muito saudável. Mas tinha uma copa ainda verde e aqueles frutos que, abertos, revelam uma espécie de algodão. Estava viva, era indiscutível. E era minha árvore preferida - sua inclinação permitia que andássemos nos equilibrando pelo tronco até quase chegar no topo, nenhuma outra dava o mesmo acesso às suas alturas. 

Das árvores às gentes, mantenho essa preferência pelo torto e pelo raro que, por isso mesmo, permite acessar seu alto. Gente viva ainda que tombada, que insiste. 

Eu devia ter uns 8 anos e começara a ter, na escola, aulas de “ecologia”. Sempre fui muito impressionável e a professora era ótima de modo que, à época, tornei-me uma versão mal-acabada da Greta Thunberg. Naquele ano, tive o meio ambiente como causa. 

Uma tarde em que andava de bicicleta vi chegarem os homens com a motosserra, cinco ou seis, muitos para uma árvore indefesa. 

Tive uma crise nervosa, me empoleirei abraçada ao tronco e decretei que ninguém cortaria aquela árvore. Ela estava condenada, me explicaram, podia desabar e machucar alguém, além do risco de atingir a casa da vizinha. Eu argumentava que não matávamos quem estava doente, deveríamos antes cuidá-la, construir um suporte para que não caísse, ela ainda produzia frutos, aquilo me parecia um assassinato.

Veio a vizinha, outros vizinhos, os amigos que andavam de bicicleta comigo, parou gente para olhar a cena da menina abraçada ao tronco da árvore chorando e gritando que eles não tinham direito de matá-la. Ligaram para minha mãe no trabalho, me recusei a sair para falar (não existia celular), muita gente tentou, em vão, me persuadir. Sou capaz de invocar aquele afeto sem fazer força. Lembro da garganta ardendo, lembro de falar muito alto, lembro de chorar e lembro de me sentir muito revoltada, sozinha e, definitivamente, do lado certo da situação. O impasse durou um bom tempo, os adultos revezavam-se entre a impaciência, a autoridade, a ameaça e a tentativa de enganação. Eu, irredutível. 

Meus amigos, entusiasmados no começo, já diziam “deixa, Ju”. Não deixei. Estava disposta a passar o dia ali. Lembro de, a certa altura, ficar com vergonha de tanta plateia, mas era tarde para recuar. Tentaram me arrancar até à força, mordi o braço da vizinha, mas ninguém conseguiu me tirar dali. Afinal, os homens recolheram as armas e foram embora. Fiquei vigiando a árvore até que minha mãe chegou, no fim da tarde, e me mandou entrar. 

No dia seguinte, os homens assassinos de árvores voltaram nas primeiras horas da manhã e terminaram o serviço. Eu caí de cama, tive febre. Melhorei depois que minhas duas melhores amigas chegaram com uma fotografia de nós três embaixo da nossa árvore preferida para chorar comigo. Clarice não teve tempo para descobrir que aqui, nesse planalto esturricado, o amigo é o lugar onde se pode chorar. 

Ou talvez não seja Brasília, mas a terra da gente. 



Juliana Monteiro

É jornalista e escritora, tem dois filhos e mora em Roma.




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