Como professora da PUC-Rio devo ministrar todo semestre uma disciplina na Pós-graduação do Programa de Literatura, Cultura e Contemporaneidade (Mestrado e Doutorado) e uma na Graduação em Letras ou em Artes Cênicas. No semestre de março a julho de 2022 lecionei a disciplina introdutória e obrigatória do doutorado, intitulada Seminários Avançados. O programa do curso pode ser acessado aqui.
Nele lemos A Vergonha, de Ennie Ernaux[1], e discutimos ao longo de um módulo do programa a hipótese segunda a qual os afetos são também um “assunto” público. Foi a partir dessas discussões que ocorreu a ideia de “ocupar” a minha coluna na Revista Pessoa com alguns dos textos lidos no curso, e com outros textos produzidos para a Pessoa, por alguns dos pesquisadores - alunos ali presentes.
Os textos lidos no curso foram escritos por intelectuais e colegas franceses, Tiphaine Samoyault, Alexandre Gefen e Dominique Viart, cujas traduções foram feitas por Gabriel Martins. Eles abrem, junto ao meu pequeno preâmbulo textual, de efeito poético-crítico à leitura de Ernaux, essa nossa “ocupação”.
Em agosto serão publicados textos escritos em dupla, numa experiência também instigante, produzidos por Tais Bravo e Luisa Espindula, Alice Monteiro e Ana Cristina Toledo, Mateus Baldi e Gabriel Martins, doutorandos inscritos no curso.
Agradeço a Mirna Queiroz sempre, por tudo o que representou em minha trajetória enquanto escritora a Revista Pessoa. Sem que soubéssemos no início, entendo que hoje essa ocupação é também uma homenagem ao trabalho da Mirna, cuja criação e curadoria da/na Pessoa foi constantemente pautada pelo diálogo e pela abertura ao mundo, buscando inventar des-hierarquias literárias e linguísticas, passagens entre línguas, e mesmo quando na “mesma” língua portuguesa. Para nós, que escrevemos desde o Brasil, esse espaço onde a palavra tem eficácia e valor é absolutamente fundamental. E quando tudo isso é também e ainda criativo, aqui e ali divertido, cutucando as nossas certezas rígidas, vemos como o pensamento poético navega ali onde a razão gagueja e balbucia.
*
Efeito Ernaux:
os afetos são um assunto público?
Mas nada pode apagar o que senti,
esse peso, esse aniquilamento.
Ele é a derradeira verdade.
Annie Ernaux, A Vergonha
Tenho a sensação, quando leio algumas escritoras, que algo só se cumpre quando ao fechar o tempo da leitura do livro, abro uma outra página, ainda em branco, e recomeço.
Com Ernaux recomeço como se tivesse saído de um mergulho numa piscina de pedras, onde algumas pedras faltam. Meu corpo dói e não sei muito bem o que é.
Esse “dói, mas não sei muito bem o que é” acontece raramente, e remonta decerto a alguma consciência ainda trêmula, ou em estado bruto, no corpo franzino e frágil da minha infância. Bruto é também a palavra por onde começo a ler A Vergonha: mas, na verdade, nada foi revelado, além do fato bruto (Ernaux, 2022).
Busco traçar o mapa exato onde esta palavra deixou de significar um peso, uma estupidez, quando muito um animal, para indicar pessoas: selvagens, não civilizadas, sem cultura, sem educação, sem politesse, exatamente como Annie pede para existir, como ela existe em mim, e parte de mim também. Além dela e de mim existe no bruto o meu país, os meus pais, grande parte do que nos acomete, nos brutaliza. Percorro a história da brutalidade com um só olho, de relance, e passo de Bercheure a Montaigne, do século XIV, quando não existíamos para “o mundo”, ao século XVI, quando “o mundo” nos inventou. Logo, um fato bruto e minúsculo, a minha dor, torna-se uns todos nós: brutos, brutais, brutalizados.
Pegue e leia, pois aqui está o meu corpo e o meu sangue, que será derramado para você. E é exatamente entre pegar e derramar que leio Ernaux, invadida, preciso agarrá-la, para ver se assim entre os meus dedos, esmagada em letras reditas algo para de jorrar – sangue ou orgasmo. Algo sempre pegajoso, grudado, correndo para onde já não sei mais o que lá está: ausências, quase-palavras, o início de tudo – a vergonha ou o nojo. A violência de ser só um pequeno corpo vulnerável. Sempre que a leio uma interdição se levanta. Sou convidada a me sentar num mesmo e outro lugar, onde um outro eu, olha para um serzinho brutal - insignificante, minúsculo e ao mesmo tempo monstruoso. Mas como pode? Essa sua mania de incomodar a gente e de dizer o que não queremos ouvir nem saber. Deixe-nos em paz! O prazer sádico do crítico literário francês falando numa Emissão Radiofônica para a France Culture logo após o Prêmio Nobel de Annie Ernaux, entre um e outro sorriso dizendo como ela gostava e sentia prazer em falar da sua vida intima e sexual. O seu corpo sendo mais uma vez ali devorado. Nem o Nobel pode protegê-la desse ato brutal: ter saído de onde não devia, de um mundo inferior, um infra mundo, um mundo que inventamos nós para que vocês não digam nada, justo para dizer quem somos. Isso continua incomodando, e aqui e ali ainda é inaceitável.
Não, a literatura não tem mais esse poder, não tem poder algum, além de algumas luzes e faíscas que desfilam em fotos sobre a nossa timeline, a nossa linha de vida, assim reduzida a linearidade interrompida por anúncios e reels incompatíveis com a brutalidade da vida, ela mesma.
Quem já teve vergonha de vir de onde veio? Dos pais e mães, das roupas ou bairro, do jeito de comer ou de falar? Quem? Levante a mão, ou o dedo mindinho, com a carteira da escola tampando a boca e a cruz ainda aqui, por detrás de minha cabeça, nesta sala de aula, para onde vocês olham, todas as terças-feiras às 16 horas, quando nos encontramos, para imaginarmos se ainda mudaremos algo no mundo, o mesmo “mundo” que nos inventou, selvagens!
(Associar sempre a palavra particular à falta e ao medo, encerramento. Mesmo na expressão vida particular. Escrever é algo publico.) (Ernaux, 2022).
Vida particular aqui seria também vida privada, a tradução sofre, sempre, e o tradutor também. Nunca realizamos por completo essa trânsfuga de uma língua para outra, nem mesmo com essa escritora que reivindica para si uma escrita plat. Veja este caso: poderia traduzir plat por plano, mas em francês o sentido figurado de plat como raso, superficial, entre outros, é absolutamente usual. Em português do Brasil o “raso” está lá por detrás do “plano”, podemos chegar a deduzi-lo, claro, mas precisaremos de outros indícios para isso. Ainda por cima se pensamos que é uma reivindicação esdrúxula para um escritor, ou no mínimo inusual. Qual escritor reivindicaria para si mesmo uma escrita rasa e superficial? E ainda por cima se essa escrita plana nos assalta e diz: A Srta. L. ficou responsável por deixar as que moravam numa região que compreendia o meu bairro. Eu bati no postigo da porta da mercearia. Depois de um bom tempo, a luz acendeu na loja e minha mãe apareceu na porta, o cabelo desgrenhado, muda de sono, com uma camisola amarrotada e manchada (tínhamos o hábito de nos secar com ela, depois de urinar). (Ernaux, 2022).
Onde estaria o plano que tanto reivindica Ernaux?
Parece que ela reivindica algo que, mais uma vez, desarma o crítico. Faz isso ao mesmo tempo se desnudando para toda a crítica maledicente, que prefere manter em segredo, a sete chaves, a sua própria vergonha (seja ela qual for, e são muitas, pode crer). Com a sua “ajuda”, e sem muito esforço, essa crítica destroçará a sua literatura “rasa” e “privada”, que insiste em falar dela mesma. Ela mesma quem? Eles dizem: ela mesma a escritora. Eu diria: ela mesma a literatura, ela mesma a sociedade, ela mesma a crítica, ela mesma nós mesmos. Ela mesma Todo-Mundo (Glissant).
Ora, em primeiro plano o que a literatura de Ernaux escancara é que as nossas categorias e gêneros literários não dão mais conta dos fenômenos e escritas que atravessam o nosso tempo. Como disse Samoyault, Annie Ernaux não escreve nem romance, nem autobiografia[2]. Diria ainda que o efeito de sua literatura provoca um desmoronar de certas dicotomias que também já não dão conta da nossa vida, dentre elas o subjetivo como exclusivamente íntimo e o político como exclusivamente público, e um opondo-se ao outro, claro. Algo se descentra aos nossos olhos, eu diria que é a própria episteme Ocidental, reivindicando uma imaginação afiada, assim como outras cosmologias de vida para recriarem os nossos vínculos, os vínculos que antes se estabilizavam através dessas mesmas dicotomias funcionando em oposição. Podemos inferir que, por exemplo, a oposição entre o publico e o privado, funcionando plenamente, permitia um vínculo social “mais estável”, mas nem por isso menos opressor, ou mais igualitário.
Precisamos começar a imaginar algo que ainda desconhecemos. São muitas as oposições que hoje já não se opõem, ao menos não do mesmo modo que antes. Isso está ruindo, a olhos nus. A literatura prova que ela antecipa, e muitas vezes ajuda a construir novos laços e enunciados que abrirão caminho para diferentes epistemes, novos enunciados, novos modos de ver e de dizer, logo, de viver. Porque se há algo indubitável na literatura de Ernaux é que os afetos tidos como privados são assunto público, e não como vimos majoritariamente tratando, como algo exclusivamente de foro íntimo e particular.
Se aceitarmos isso precisaremos olhar e cuidar dos nossos afetos publicamente também. Logo, precisaremos de espaços públicos e institucionais para que esse cuidado possa acontecer. Esses afetos são eles mesmos públicos. Criados nessa dobra onde já não conseguimos apartar o social do individual. O mundo nos invadiu. E estamos invadindo o mundo. Isso agora se dá ao mesmo tempo. Antes éramos só invadidos, digo, alguns.
O raso em Ernaux é como a piscina de pedras, na qual faltam algumas pedras. Pedras com as quais o tradutor e o leitor se debatem e se machucam. No caso do tradutor ele faz renascer algo de imenso e valioso: essa literatura-mundo, agora escrita em mais de trinta idiomas. Ernaux falando em japonês, em sueco, para o círculo dos acadêmicos que num pequeno país, perdido ao norte do Norte lhe premiou com o Nobel. Ernaux por fim em português do Brasil, esse país imenso, mas ainda de tão poucos leitores, que agora gozam com a delicadeza e a potência da tradução de uma outra grande escritora e poeta: Marilia Garcia, a quem agradecemos, e muito. Sem a qual, junto aos Editores, essa Ocupação na Revista Pessoa sequer seria possível. Hoje um aluno de doutorado, mesmo em Letras, não é um leitor obrigatório da língua francesa. Faz tempo que a França perdeu esse trono no mundo. Queremos nós hoje, leitores e pesquisadores, escritores e críticos, que os nossos textos também circulem no “mundo deles”, e que um Todo-Mundo de fato, como fato bruto, possa um dia, de fato, vir a existir.
*
Quando leio Ernaux, assim como acontece com algumas/ns outras/os escritoras/es, tenho o impulso, a pulsão, o ímpeto e a sensação de que preciso escrever, de que que preciso prolongar aquilo que me assalta quando a leio, de que ou continuo escrevendo ou serei indigna, antes de tudo indigna como leitora. Logo, como escritora. Nunca como crítica. Ela não precisa de mim como crítica, ela mesmo opera a crítica de sua obra, no interior mesmo de sua obra. Não em entrevistas exclusivamente, como hoje se espera de todo escritor e artista. Acho que ela incomoda também por isso: escrever pode ser mais democrático. E a função crítica já não é mais exatamente o que esperávamos dela. Precisamos de um grande esforço conjunto para imaginarmos saídas. Alternativas de vidas. Todos nós. E por fim: não há escritor que não seja antes de tudo esse leitor que padece para não permanecer indigno, mudo, silenciado.
O tempo que cada leitor padece já é outro assunto. A velocidade do nosso tempo atual também. Precisaríamos colocar um astrofísico ao lado de um astrólogo para ver se dessa conversa algum enunciado novo surge sobre porque o nosso tempo passa tão rápido...assunto para outra Ocupação. Desejosa, e isso também incomoda, o desejo das mulheres, de mundos porvir, digo: ocupemos!
[1] A Vergonha. Tradução: Marilia Garcia. São Paulo: Fósforo, 2022.
[2] Neste link em francês. E agora disponível na traduçao de Gabriel Martins aqui na Revista Pessoa.