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Efeito Ernaux, por Alice da Palma e Ana Toledo

ETIENNE GIRARDET



2023-08-05

um tipo de dom reverso

Alice da Palma e Ana Toledo

 

A escritora francesa e Nobel de Literatura de 2022 Annie Ernaux reivindica para si, especialmente a partir do livro La place, escrito em 1983, uma escrita que ela chama de écriture plate. Mas o que seria uma écriture plate?

Plat(e)[1], em francês, significa, enquanto adjetivo concreto, plano, horizontal, raso ou pouco profundo, pouco saliente, de espessura pequena. Figurativamente denota algo sem característica notável ou qualidade marcante: sem brilho, medíocre.

Estranha reivindicação essa, a de uma escrita plana, rasa, sem brilho…

Em uma passagem de La place, Ernaux escreve: Pour rendre compte d’une vie soumise à la nécessité, je n’ai pas le droit de prendre d’abord le parti de l’art, ni de chercher à faire quelque chose de “passionnant”, ou d’“émouvant”. […] Aucune poésie du souvenir, pas de dérision jubilante. L’écriture plate me vient naturellement, celle-là même que j’utilisais en écrivant autrefois à mes parents pour leur dire les nouvelles essentielles[2](ERNAUX, 1990, p. 57-58).

Escrever de maneira "plana" é, portanto, banir a poesia da memória, é abdicar das frases complexas e da ornamentação, do uso de figuras de linguagem. É evitar, ao escrever, deixar-se levar pela emoção. Valer-se de um imaginário de palavras feito de pedra. Escrita dura, cortante, violenta, distante, plate.

Para Ernaux, adotar esse método-forma é reivindicar o seu lugar, é ato político de inscrever-se no meio popular onde nasceu e de onde pôde sair, é afirmar-se transfuge, e o seu dilaceramento entre duas classes. A escrita, diz Ernaux, é um (f)ato social e político. O seu projeto literário coloca a escrita entre a literatura, a sociologia e a história. Autobiografia coletiva (numa chave sociológica e histórica), em que tempo e memória costuram-se numa trama coletiva dos afetos, salvando o "eu" de sua solidão e o "nós" do esquecimento: "salvar alguma coisa do tempo em que nunca estaremos mais".

Escrita seca e despojada (sem ornamentos e frases elegantes) que desnuda a dor, a alegria e a complexidade de existir em determinado lugar: auto-sócio-biografias. Mais ce terme de « récit autobiographique » ne me satisfait pas, parce qu'il est insuffisant. Il souligne un aspect certes fondamental, une posture d'écriture et de lecture radicalement opposée à celle du romancier, mais il ne dit rien sur la visée du texte, sa construction. Plus grave, il impose une image réductrice : « l'auteur parle de lui. » Or, La place, Une femme, La honte et en partie L'événement, sont moins autobiographiques que auto-socio-biographiques[3](ERNAUX, 2003, p. 14).

Assim, ainda que extremamente íntimas sob certo aspecto, as narrativas de Ernaux nascem de uma escrita que assume necessariamente uma distância das emoções do sujeito que escreve (não é, de forma alguma, um diário íntimo que dá conta apenas do "eu"). O pessoal, o íntimo, para Ernaux, não é restritivo, pelo contrário, é aquilo que existe de mais compartilhado(vel), pois (pode) ocorre(r) a todo mundo. Não existe, portanto, um "eu" puro apartado do mundo, i.e., livre de atravessamentos sociais, históricos e políticos. Tomar distância, transubstanciar as experiências é desnudá-las, torná-las comunicáveis e passíveis de serem apreendidas por e de afetar qualquer um. É fazer cintilar no íntimo o que ele tem de coletivo.

Essa operação-cintilância se dá na linguagem, ou seja, na forma da escrita. Escrita como faca[4], opera em cortes e fraturas, abrindo e cavando a matéria mesma da língua, fazendo surgir o que está escondido.

Dessa forma, a escrita plate ganha novos contornos, ou talvez apenas os revele: concavidades em seu interior. A planície dura abriga vales. O plat, o plano e o raso, abriga em si, na escrita de Ernaux, uma certa profundidade escondida, um convite ao mergulho. Ou, melhor, é como um ventre: "depositária da espessura da existência" (BARTHES, 2015, p. 32).

 

*

E é atendendo a esse convite que a tessitura de memórias e escritas coletivas enredadas e desveladas neste artigo, uma mescla entre as nossas e as de Ernaux, faz com que a palavra plate acabe esbarrando no termo plain em inglês. Uma palavra pirilampo, que brilha assim do nada e ilumina um canto da nossa memória e de lá surge uma leitura quase esquecida, uma personagem marcante: Jane Eyre. Do you think, because I am poor, obscure, plain and little, I am soulless and heartless? You think wrong! - I have as much soul as you, - and full as much heart! And if God had gifted me with some beauty and much wealth, I should have made it as hard for you to leave me, as it is now for me to leave you!  I am not talking to you now through the medium of custom, conventionalities, not even mortal flesh: -- it is my spirit that addresses your spirit: just as if both had passed through the grave, and we stood at God’s feet, equal, -- as we are[5] (BRONTË, 2010, p. 859).

A escrita plate de Ernaux, impregnada por essa pobre, obscura pequenez, que justo ali se afirma; uma auto-proclamada simplicidade desafiadora e desconfiada dos costumes e convenções que interditam as possibilidades de um dizer entre iguais. Ciente dos limites a que suas palavras estão submetidas, resta a Jane Eyre evocar um momento sem corpo, quando enfim poderá falar em pé de igualdade com o Sr. Rochester, com o mundo dominante que sempre a desprezou. Tal qual Charlotte Brontë cria Jane Eyre, Annie Ernaux, mais de um século e meio depois, cria Annie Ernaux.

Ernaux não apaga da escrita a sombra da mulher Annie Ernaux projetada sobre a folha de papel. O momento da escrita impregna a palavra de Ernaux tal qual o passado, onde a experiência real ocorreu. Durante todo esse tempo, tinha a impressão de viver minha paixão de forma romanesca, mas agora não sei qual é a forma em que escrevo, se a do testemunho, da confissão tal como praticada nos diários femininos, ou se a do manifesto ou processo verbal, ou até do comentário textual (ERNAUX, 2023, p. 23).

 

De novo, é no instante que a tinta marca o papel que tudo se confunde, que a palavra duvida de si, mas é apenas nele que a escrita se dá. O resgate da memória voluntária se materializa no corpo de uma filha de comerciantes humildes, que, também como Jane, muda de classe social, mas ao contrário desta, se julga apta a reivindicar o seu momento para o dizer. Jane Eyre, de Charlotte Brontë, também me marcou muito. Este livro na primeira pessoa é como um fio condutor da existência. Trata-se, também aqui, de viver uma vida de independência, sem dominação. Estes modelos estruturaram-me (ERNAUX, 2022, s.p.).

Ernaux vislumbra em Jane Eyre uma tentativa de “viver uma vida de independência”.  A memória é o fio condutor dessa existência que, mesmo cerceada pela realidade inglesa do século XIX, insiste em não se deixar dominar.  No início do capítulo X, Jane Eyre descreve o mecanismo de sua escrita. Hitherto I have recorded in detail the events of my insignificant existence: to the first ten years of my life I have given almost as many chapters. But this is not to be a regular autobiography. I am only bound to invoke Memory where I know her responses will possess some degree of interest; therefore I now pass a space of eight years almost in silence: a few lines only are necessary to keep up the links of connection[6] (BRONTË, 2010, p. 663).

Nesse romance ficcional autobiográfico escrito em primeira pessoa, mesmo contradizendo as recorrentes afirmações sobre sua insignificância, a seleção das recordações se baseia naquilo que a narradora julga interessante em sua memória. Se Jane Eyre é a medida, Annie Ernaux também é a única medida de sua história.  Mas, no não-romance não-ficcional não-autobiográfico de Ernaux, o fio condutor, além da memória, é entremeado também pelo ponto de vista sensível particular de um corpo feminino localizado dentro de um quadro histórico coletivo, mas específico, em diferentes tempos. O patrimônio coletivo vivifica a escrita de Ernaux e esgarça qualquer tentativa de trançar um fio condutor da existência para a construção de um “eu” fixo e estável.

A narrativa de Ernaux tende para uma outra escala de observação do mundo e parece se multiplicar em microunidades, em uma pluralidade de pontos de vista. Ernaux compartilha com o leitor não apenas o que vê, mas sobretudo como a vida está dada no corpo, tanto no instante da escrita quanto na memória arquivada em lembranças e objetos, e antes até, em cada palavra justamente escolhida. “Fazer uso dessas palavras – algumas das quais ainda exercem seu peso sobre mim – para decompor e remontar, ao redor da cena daquele domingo de junho, o texto que compunha meu mundo aos doze anos, quando achei que iria enlouquecer” (ERNAUX, 2022, pg. 24). Percebe-se, acima de tudo, uma Annie Ernaux que busca ser fiel às duas em jogo na escrita: a Ernaux no tempo-agora da escrita e aquela descrita.

Na escrita plate se entrevê a (auto)contenção de Ernaux manifesta no manuseio cuidadoso não de toda a linguagem disponível, mas daquelas palavras e textos que circulavam na família, na escola, na vida do interior, na intimidade da paixão, em cada cena do arquivo memorial privado. Assim é que o peso das palavras selecionadas, muitas delas insignificantes e simples demais para os outros, borra a separação entre um coletivo e um individual.

Poderia se pensar numa escrita sem afeto, quase factual?  Como diria Jane Eyre (ou como posso também ouvir Ernaux): “You think wrong!”.  Ernaux escolhe expressar em palavras a existência que sempre passa por ela.  Um tipo de vivência que o mundo lhe traz.

A escrita de Ernaux assinala algo privado e autêntico, uma certa apreensão sentida na palavra, na busca por novos modos de escrever a política da/na literatura, a relação entre mundo, cultura e literatura, a posição da mulher, as experiências da classe operária, a escrita como salvação, a interconexão de palavras e coisas, a escrita como relação, a escrita como necessidade, a relação entre sua vida e a escrita, e a escrita como forma de existir no mundo.

Escrever é, enfim, seu dom, um tipo de dom reverso[7]

 


[1] Segue a entrada no dicionário Le Robert que nos serviu de fonte: "plat: I. adjectif (concret) – 1. qui présente une surface plane ; horizontal; 2. dont le fond est plat ou peu profond; 3. peu saillant; 4. de peu d'épaisseur. II. adjectif (figuré) –1. sans caractère saillant ni qualité frappante. ➙ fade, médiocre".

[2] "Para contar a história de uma vida regida pela necessidade, não posso assumir, de saída, um ponto de vista artístico, nem tentar fazer alguma coisa 'cativante' ou 'comovente'. [...] Nada de memória poética, nem de ironia grandiloquente. Percebo que começa a vir com naturalidade uma escrita neutra, a mesma escrita que eu usava nas cartas que enviava aos meus pais contando as novidades". (Editora Fósforo, 2022, tradução de Marília Garcia)

[3] "Mas esse termo 'relato autobiográfico' não me satisfaz, porque ele é insuficiente. Ele reforça aspectos certamente fundamentais, uma postura de escrita e de leitura radicalmente opostas àquela do romancista, mas ele não diz nada sobre a intenção do texto, sua construção. Maia grave ainda, ele impõe uma imagem redutora: 'o autor fala de si'. Ora, O lugar, Une femme [uma mulher], A vergonha e em parte O acontecimento são menos autobiográficos que auto-sócio-biográficos" (Tradução das autoras)

[4] Alusão ao livro L'écriture comme un couteau em que é publicada uma espécie de entrevista de Annie Ernaux concedida a Frédéric-Yves Jeannet. Entrevista alargada que se deu ao longo de aproximadamente um ano e a partir de e-mails provocações (questionamentos dialogantes, como ele coloca) de Jeannet à Ernaux.

[5] “O senhor pensa, que porque sou pobre, obscura, simples e pequena, que não tenho alma nem coração? Então está pensando errado! Tenho tanta alma quanto o senhor, e até mais coração! E, se Deus tivesse me dotado de alguma beleza e grande fortuna, tornaria tão difícil para o senhor deixar-me quanto para mim é difícil deixar o senhor. Não estou lhe falando através do costume, das convenções ou da carne mortal: é o meu espírito que se dirige ao seu, como se os dois houvessem passado pelo túmulo e agora estivessem aos pés de Deus, iguais — como somos”. Tradução Doris Goettems (in BRONTË, C. Jane Eyre: na autobiography. São Paulo: Editora Landmark, 2010).

[6] “Até aqui, recordei em detalhes os eventos da minha insignificante existência. Dediquei quase todos os capítulos aos dez primeiros anos da minha vida. Mas esta não pretende ser uma autobiografia comum. Só me permiti invocar a memória quando sei que as suas respostas possuíam algum grau de interesse. Portanto, vou avançar oito anos sem muito a dizer. Apenas algumas linhas são necessárias para manter a sequência da história”. Tradução Doris Goettems (in BRONTË, C. Jane Eyre: na autobiography. São Paulo: Editora Landmark, 2010).

[7] "L'image du 'don reversé' à la fin de Passion simple vaut pour tout ce que j'écris. J'ai l'impression que l'écriture est ce que je peux faire de mieux, dans mon cas, dans ma situation de transfuge, comme acte politique et comme 'don'" (ERNAUX, 2003, p. 39). Tradução nossa: "A imagem do 'dom reverso' ao final de Paixão simples vale para tudo que escrevo. Tenho a impressão de que a escrita é o que posso fazer de melhor, no meu caso, na minha situação de trânsfuga, como ato político e como 'dom'".



Ana Kiffer

É Professora da Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio, Cientista do Estado pela FAPERJ e Bolsista de Produtividade no CNPq. Curadora convidada da Bienal de SP 2021. É escritora, autora dos livros Tiráspola e Desaparecimentos, Editora Garupa, 2016, A punhalada, 7Letras, 2016, Todo Mar, Urutau, 2018; colunista da Revista Literária Pessoa, pesquisadora da obra do escritor francês Antonin Artaud, vem desenvolvendo há muitos anos uma investigação sobre os diversos modos de relação entre os corpos e a escrita. Autora do livro Antonin Artaud, EDUERJ, 2016, e com Gabriel Giorgi, Ódios Políticos e Politica do Ódio, RJ: Bazar do Tempo, 2019 e Las Vueltas del ódio, BA: Eterna Cadência, 2020. Organizadora do livro A Perda de Si – cartas de A. Artaud, Rocco, 2017; e das coletâneas: Sobre o Corpo, 7Letras, 2016, Expansões Contemporâneas: literatura e outras formas, com Florência Garramuno, UFMG, 2014, entre outros artigos e ensaios.  Foi curadora, em 2020, da exposição Corte/Relação dos cadernos de Antonin Artaud e de Édouard Glissant. Para a 34ª Bienal de São Paulo. Em 2021, estreou seu primeiro romance O Canto Dela, pela editora Patuá. Fotografada por Dani Neves.




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