“I've had nothing yet,” Alice replied in an offended tone, “so I can't take more.”
“You mean you can't take less,” said the Hatter: “it's very easy to take more than nothing.”
Lewis Carroll, Alice’s Adventures in Wonderland
I
Há um exercício nas aulas de barra de chão em que sobes a meia ponta para testar o equilíbrio. O professor diz para virares a cabeça para um lado. Assim fazes. Depois para o outro. Por fim, no centro. O truque é fixar um ponto e fingir que continuas a olhar para ele mesmo com os olhos fechados. Quando pensas que conseguiste, desequilibras-te logo. É difícil resistir à tentação de não olhar para as outras mulheres no estúdio e fitar apenas o ponto imaginário no espelho. Um espelho que ninguém segura, mas que exige de ti segurança. É isso que estas mulheres fazem. Equilibram o corpo ao final do dia, à procura desse lugar imaginário onde se aguentam sempre direitas.
II
Sais de casa e caminhas até aos viveiros para comprar peónias. Se depois as levas ou não, é outra história. O que importa é ocupar este espaço para desocupar a mente de falsas urgências. Ver os cactos, as sementes, as plantas que vão ficar a pedir água porque vais-te esquecer de regar, as flores da época, as que conheces pelo aroma e não pelo nome, muito menos pela etiqueta em latim. A funcionária carrega uma caixa cheia de vasos com espécies de várias cores. Elas surgem e exigem total atenção. Admira-me. Admira-me aqui, admira-me agora. Admira-me em números, ou sozinha. Admira-me. Não questionam a sua beleza, ainda que por ela sejam reconhecidas. Em qualquer Primavera, sussurram. Admira-me, admira-me, admira-me. Será maldição, ou bênção?
III
Correr atrás implica perder o ritmo. De outra forma estarias ao lado, ou mesmo à frente. Mas estando atrás a posição é de desvantagem. Seria mais correcto dizer andar atrás de? Caminhar ao lado de? A imagem da corrida mostra que estás com pressa e tu estás sempre com pressa. Talvez o desconforto venha daí. Tentas justificar o abrandamento, receias desistir da corrida, ou parar para beber água. De onde herdaste esta pressa? Esta ânsia? Uma necessidade de correr para chegar primeiro. Ser a primeira a chegar à mesa. Leva agora, filha, depois não sobra para ti. Tu queres que sobre para ti e por isso corres. Também corres de alguém, corres para algum lado. Talvez corras para fugir de ti. Talvez continues a correr para descobrir repetidamente a impossibilidade desse desejo.
IV
Verão. Festa na piscina. Elas não aparecem, estão com o período, dores de cabeça, sentem-se expostas. Ainda não conheces esse desconforto da adolescência. Levas o biquíni vermelho, a parte de baixo com corações, a de cima simples. Devia ser ao contrário, segundo as regras do tipo de corpo. Devias querer equilibrar a figura e Verão outra vez. Uma outra piscina. Ainda não sentes esse desconforto, muito menos medo, por isso surpreende-te quando eles vos perseguem. Antes estavas na água tranquila, eras só uma nadadora. Talvez o mesmo Verão, a mesma piscina, um outro dia. Elas apareceram, o sol já quase mirrou, a piscina vai fechar. Verdade ou consequência. O desafio é mergulhares sem molhar a ponta dos pés, saltares logo, depois do corpo aquecido no sol da tarde. E três vezes! Lembram elas. E três vezes o fazes. E o teu corpo obedece. E voltas com água nos ouvidos, olhos vermelhos e mãos enregeladas. Estupidamente feliz.
V
Se perdes as tuas linhas no ballet, perdes tudo. Ouviste isso num filme. Aquele em que o protagonista nasce velho e morre novo. Ela tem um acidente e já não dança. A personagem sente o embate violento que lhe valeu a perna, mas já não poderá mais sentir a exaustão rotineira da disciplina. Que corpo irrequieto esse. Impedido de mover.
VI
Encontras algumas fotos do evento. Numa delas, a tua cara foi cortada, só aparece o teu tronco. Podias tentar explicar o sexismo desta escolha, argumentando com inúmeros exemplos de anúncios publicitários, mas não o fazes. Ao contrário dos corpos da publicidade, este corpo não é desejável o suficiente para ser objectificado. Envias uma mensagem à tua amiga. Ela parece chateada com a tua auto-depreciação. Queres dizer-lhe o que vês. A barriga saliente. As pernas tão largas junto às dela, o facto de recorreres ao humor, porque não consegues desligar. Não te lembras da última vez que uma foto foi apenas um registo. Qual a última vez que uma foto foi apenas uma foto?
VII
Conténs um ataque de riso enquanto tentas manter a pose. Vestes um casaco de desporto e tens o pijama por baixo. Ele dá indicações parvas e isso só faz com que te rias mais. Pedes para mostrar como ficou e examinas cuidadosamente cada defeito, cada parte a retirar, ou reduzir. Talvez fiques bem na próxima.
VIII
Algarve, há muito tempo. Deitada naquele chão frio do apartotel segurando um chupa-chupa gigante, colorido. Olhas para ele. Com um chupa-chupa igual, tem a cara lambuzada de açúcar. Sorriem os dois para a câmara. Aqui, ainda eram só fotos, registos. Comias com gente ao lado.
IX
Ela vai sempre comer o arroz-doce obrigada, quando ninguém olha, postura para dentro da mesa. Vai continuar a limpar mesmo quando já não há nada para limpar. Que outra forma tem de ocupar o tempo? Quando chega a hora da novela, senta-se no sofá e fica a coser ou a mexer no terço, fingindo desinteresse no desenvolvimento da trama. Não queres ter pena dela, não queres ficar chateada, não queres carregar a culpa da sua fragilidade que te assombra diariamente. Estás numa idade em que esperas mudança e ela numa em que nada muda.
X
Instruções para uma mousse de chocolate instantânea (sabor garantido!)
Vai precisar de:
- Uma mulher cansada
- Água quente
- Uma saqueta de mousse de chocolate instantânea (ou cacau solúvel)
- Claras em castelo
- Uma criança apta para lamber a taça antes de ir ao frigorífico
XI
Ela tem de mediar as discussões de quem comeu mais, de ires lavar os dentes, de nem ser bom comer chocolate a esta hora, de ainda teres de tomar banho, de não gostares de tomar banho, do medo do duche, do champô a entrar-te nos olhos, de não conseguires agarrar a toalha, de precisares de ajuda, de continuar a arder, de ela dizer que já está tudo bem e se não tivesses mexido a cabeça, de quereres continuar na banheira com os patinhos e os outros bonecos, mesmo quando já é hora de sair.
XII
Mulheres que escrevem listas. Listas de compras, listas de ingredientes, listas de material para a escola. Listas de móveis a vender, listas com o dinheiro que te devem, listas com o que levas na mala antes de viajar. Listas que te permitem compreender quem vais sendo, quem deixas de ser. A roupagem que tiras e a que vestes.
XIII
Balneário. Falam de barras de cereais. Explicam quais as mais proteicas, que saciam a fome. Estúdio. O professor faz correcções aos passos. E têm de comer antes de vir para a aula, avisa. Balneário outra vez, ou então corredor antes de entrar no estúdio. Outro dia. Alguém conta histórias de terror do Conservatório. Desmaios, dias de pesagem. Alguém fala sobre evitar batatas fritas. Dia de espectáculo, camarim. Professora com tupperware na mão, a comer. Precisa de energia para a quantidade de miúdas a maquilhar e cabelos por arranjar. Uma delas pede-te a ti que a arranjes, diz que também sabes pintar bem os olhos. Levas um livro que tentas ler quando já estás de tutu. Outro ano, outro espectáculo. Fato de cor diferente, mesmo camarim. Alguém conta que perdeu peso quando perdeu o pai. Ninguém sabe o que responder.
XIV
Comes uma tarte de lima naquele café simpático da cidade em dia de cortejo. Pensas em algo que leste sobre uma mulher a comer bolo de chocolate na Nova Iorque pós-11 de Setembro. Um acto de loucura? Desejo? Pura distracção? Talvez desviar os olhos do mundo para que o prato seja uma forma genuína de luto.
XV
Pedes a tarte de lima para poderes sentar-te num sítio com ar condicionado, longe dos velhos alcoolizados que viste no parque. Precisas de ficar calma. Comer qualquer coisa sem ser observada. Já vai ser noite. Lembras-te da tua amiga dizer que arrisca um bocado ao apanhar o último comboio para casa. Da rapariga que sai uma estação antes porque é sede de concelho e há mais gente a descer. A cumplicidade que floresce a partir do reconhecimento mútuo do receio. Que corpo é este que não te protege?
XVI
A enfermeira pede para subires à balança. Mede-te a tensão e começa a actualizar a ficha. Pergunta se tens filhos. Respondes que não. Ela fixa os olhos em ti por um momento, depois volta a olhar para o ecrã do computador. Diz que o exame ginecológico é comparticipado a cada dois anos, mas ela recomenda todas as mulheres a fazerem anualmente. Avisa que tens de fazer a cada filho que tiveres. Nova gravidez, novo exame. Faz esta contagem até cinco como se esse fosse o número ideal de crianças a ter. É 2022 e ela tem a certeza que vais ter filhos. Fala de um quando, não de um se.
XVII
Recordas-te da criança que queria dançar sapateado. Ela descobre uns sapatos negros num livro de fábulas e quer uns iguais. Depois vem a jovem que idolatra The Beatles, o Sinatra e todos os filmes de época. Mais tarde surge a viajante que planeia os seus itinerários com espectáculos em vista. Na ópera de Viena, assiste a Giselle pela primeira vez e chora. Talvez ela seja ridícula. Talvez a felicidade tenha tudo a ver com calçar os sapatos certos.
XVIII
Abres o computador para começar a trabalhar. O ecrã apresenta-te a imagem de uma tenda verde sobre um céu estrelado. Em baixo as horas. 8h23. No canto superior direito, a tela devolve-te a derradeira pergunta. Gosta do que vê?
XIX
Perguntas-te se a Madrasta Má terá tido um espelho em criança. Será que gostava do seu reflexo nessa altura? E que aventuras terá vivido antes de casar com o pai da Branca de Neve? Na história, a sua felicidade depende da resposta que o espelho devolve. A sua felicidade depende de saber se ainda está à frente naquela competição de ser a mais bela de todo o reino. O trágico é que, se não for a enteada, haverá uma outra jovem donzela que colocará a felicidade da Madrasta Má em risco. Agora que pensas nisso, não é bem felicidade, é segurança. Olhar para aquele espelho e receber a mesma resposta todos os dias é a única maneira de ela sentir-se segura, sentir que pertence. No entanto, esse sentimento é precário. Quando a resposta difere, a Madrasta perde o controlo e parte o espelho mágico. Esse espelho também é uma prisão. Foi mais um que aceitou o adjectivo escolhido para eternizar esta mulher. Má.
XX
A maldição dita que nunca ninguém vê quando fazes bem. É precisamente na altura em que o professor vira o olhar na tua direcção que os pés estão por esticar, os ombros tortos, os saltos hesitantes. No entanto, o espectáculo continua. Nada pior do que congelar em palco e comprometer o todo. Num esforço colectivo, a performance deverá ser performance até ao fim. O espectáculo tem de continuar.
XXI
Cuidar de um corpo que não se ama é cansativo. Começas por recolher frases inspiradoras que vês na internet, mas o absoluto dessas afirmações assusta-te. Ama-te como és, diz uma delas. Como é que fazes isso? A um alcoólico diz-se que a solução é deixar de beber. Ficar sóbrio para sempre. E para ti? Qual a solução? Não podes ficar eternamente sem comer. Há dias em que desejas que este policiamento auto-infligido se vá embora. Queres olhar para alguém e ver uma pessoa em vez de uma determinada percentagem de músculos, gordura e massa óssea. Fazes um pacto contigo mesma. Vais esquecer o absoluto e começar pelo básico. Respiras fundo. Eventualmente, conseguirás chegar ao outro lado deste labirinto. Por agora, o melhor é aceitar que estás lá dentro e que, antes de encontrares a saída, o inevitável acontecerá. Vais-te perder um pouco.
XXII
Se calhar eras mais magra naquela altura, mas eras mais feliz?
XXIII
Balneário. Dez minutos antes da aula começar. Queres dizer-lhe que estás com medo. Passou-se muito tempo desde a última vez que entraste num estúdio de dança. A tua amiga explica-te que não há problema em estares enferrujada. Aqui há vários níveis e podes fazer as aulas que quiseres. Olhas para o horário que tens guardado no telemóvel. Uau, até têm Bollywood. Vês? Qualquer dia temos de ir as duas experimentar. Experimentar. Novas amigas, novas experiências, novas memórias. Vestes-te rapidamente. Calças de fato treino, t-shirt, cabelo apanhado e meias daquelas para não escorregares. Há um espelho aqui, onde vês os cacifos e o teu reflexo. A tua amiga chama-te do corredor. Pronta?
XXIV
Estúdio. Dez minutos depois da aula começar. Tudo te espanta. A boa disposição da professora, o estares a conseguir seguir os passos, este local ser um segundo andar em vez de uma cave sombria, o facto de haver janelas e entrar luz natural, estar um homem a fazer a aula. É só um, mas já é mais que a média habitual. Com a prática vais-te aperceber que a professora troca as filas para todos terem oportunidade de se chegar à frente e verem-se ao espelho. E muda a fila! Agora estás tu à frente. Ainda insegura. Ainda assim, a desfrutar da experiência.
XXV
O corpo não se esquece, lembras-te? Era o que o teu antigo professor de dança dizia. Vai-se recordando, pouco a pouco, destes movimentos e aprende novos. Regista tudo na memória sensorial. Talvez este corpo que vês reflectido ao espelho, também se lembre dos piores momentos. Nele cabem todas as contrariedades e hipóteses. É um corpo que incha e desincha, que jorra sangue, que tem calor e frio, que escondes, que mostras, que rejeitas, que comparas, que encolhes, que esqueces que existe. Um corpo que é teu, que te pertence. Um corpo que dança.