Projeto na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ promove o contato entre a ficção brasileira contemporânea e a produção acadêmica. Segundo o seu idealizador, o crítico literário João Cezar de Castro Rocha, não se trata apenas de encontrar os autores, mas de dialogar com seus textos; por isso, sempre pediremos aos escritores que enviem trechos selecionados de sua obra.
O projeto começa na próxima quinta-feira, dia 9 de abril, às 19h30, com o escritor Ricardo Lísias, que lançará o seu último livro de contos, Concentração e outros (Alfaguara).
Confira um trecho do livro de Lísias que será apresentado na estreia do projeto:
FISIOLOGIA DA MEMÓRIA
I
Descobri a razão do meu incômodo com os escritores claros: eles não têm problemas de memória. A limpidez denuncia uma inteligência simplista. Quem chora porque não consegue verbalizar um trauma é uma pessoa profunda.
Descobri meu incômodo com os escritores claros na Polônia. É uma lembrança muito nítida. Senti, a mais ou menos quinhentos metros de um pequenino terminal de ônibus na Cracóvia, a solidão mais intensa da minha vida.
Um ano depois, quando resolvi resgatar na memória o momento mais solitário da minha vida, percebi que a sensação não é ruim. Ela não me faz sofrer.
Estou sentado em um banco sozinho. Não há ninguém por perto e nenhum som. Muito longe, percebo que duas senhoras estão em um banco idêntico ao meu. É um quadro.
A solidão é física. Ela causa uma falta de ar moderada e um tênue formigamento nas pernas. O estômago fica pesado e a vista embaça. Não é possível descrever uma solidão muito intensa.
Lembro apenas da minha imagem na Cracóvia, em 2005. Não é uma lembrança ruim. As recordações que me torturam não são imagens congeladas, mas filmes de mais ou menos três minutos. Tenho quase dez na cabeça. De vez em quando eles retornam e me causam um sofrimento muito forte.
II
A minha lembrança mais sofrida dura três minutos. Ela se passa em Buenos Aires, especificamente no Aeroporto de Ezeiza, onde Perón causou um massacre ao retornar do exílio em 1973. O taxista me contou que se lembrava daquele dia: ele estava em casa assistindo à televisão. De repente, cortaram.
Minha lembrança começa quando ele disse pode deixar que eu pego e vai até quando vejo o corpo dele desmaiado, no meio-fio do estacionamento do aeroporto de Ezeiza, bem ao lado da minha mochila. Ele é careca e gordinho. Minha bagagem está pesada porque comprei um monte de livros.
Embarquei na Plaza San Martí e quando passamos por trás da Casa Rosada, perguntei-lhe se é verdade que há um túnel ligando a sede do governo a algum outro lugar. Onde é o final do túnel?
Ele me olhou surpreso e deu uma explicação estranha. Não entendi muito bem. O taxista, então, me disse que se eu tivesse tempo, pelo mesmo valor da corrida até o aeroporto de Ezeiza, ele me levaria a alguns dos pontos de Buenos Aires que se tornaram históricos por causa de Evita.
Aceitei e no final da corrida, um pouco antes de se oferecer para pegar minha mochila, já no aeroporto onde Perón causou um massacre em 1973, ele me disse que o Museo Evita vale um passeio. O Museo Evita vale um passeio.
Depois afirmou que pegaria minha mochila. A partir daí, lembro-me de tudo. De vez em quando a recordação volta e eu sofro. Ele estaciona o carro, fala um pouco mais sobre a primeira dama mais extraordinária que o mundo já teve e sai. A porta dele se fecha antes que eu abra a minha. Ele vai até a parte de trás do carro, tira com algum esforço a bagagem e depois, ao fechar a porta, acerta-a com toda força na própria cabeça. Quando o encontro desmaiado junto da minha mochila, percebo que há algum sangue logo acima da testa.