Me deixem ir, preciso me enfurnar num monastério. Não acredito muito em Deus, mas não importa; é só um detalhe, Deus. Vou vestir meu hábito branco e vou-me embora para um desses mosteiros trapistas perdidos nas montanhas vermelhas da África islâmica, onde os ventos têm nome e a gente não imagina, mas faz muito frio. Me deixem ser menor que um monge trapista, menor que um monge católico numa terra de mesquitas, menor que um pastor de ovelhas na Argélia, menor que a ovelha. Me deixem ser o mato mastigado pela ovelha.
Plantarei hortaliças, criarei galinhas e duas vacas, terei uma cadela de estimação chamada Baleia, lembrança dos meus tempos de São Paulo.
Quero ler meu Montaigne com calma, não quero morrer sem ter lido Heródoto – é tão fácil morrer sem ter lido Heródoto!
Me deixem ir, quero descalçar os sapatos sem medo de poluir os pés. Mandarei uma ou duas cartas por mês aos meus amigos. Só tirarei um retrato no dia do meu aniversário e escreverei no verso: Notre-Dame de Midelt, Marrocos (27 mar 15). Um retrato por ano, somente. Não me importo de sair mal na foto.
Cuidarei dos papéis velhos do abade, catalogarei os livros, trocarei o forro do espantalho e tentarei convencer os corvos. Me deixem ver todos os quadros pintados por Ilya Repin. Me deixem aprender japonês lendo os poemas de Shuntar? Tanikawa. Me deixem ver as fotos do Mariano Marovatto no Japão. Não tem nada mais parecido com um monge do que um nômade.
Passarei muitas horas imaginando por que Leonid Dobýtchin sempre repetia aquela mesma cena em seus contos: um homem sai de casa à procura de uma mulher que lhe faça o chá e encontra outra mulher sentada nos degraus da entrada. Ele se senta no degrau de cima e ambos ficam mudos, imóveis, enquanto ao longe passa um trem. Ela sussurra que é a finlandesa. Ele sussurra de volta: Que finlandesa?. A estrada de ferro finlandesa, que liga Helsinki a São Petersburgo.
Todas as noites, colarei o ouvido a um radinho de pilha para escutar as péssimas notícias do mundo, mas não quero mais saber das páginas de opinião, muito menos dos comentários dos leitores. Estou cansado de ouvir os homens torcendo a língua para ter razão. Me deixem não ter razão em nada. Vou tomar chá vermelho e tremer de frio com a nevasca americana.
Quando eu tiver saudade do Rio, lerei A Revolta da Vacina do Sevcenko, quero ver as fotos do Marc Ferrez e do Augusto Malta (dispenso as caricaturas), quero passar anos encontrando semelhanças entre todas as rebeliões do meu país. Quero pensar profundamente nas bolhas de ar presas no gelo da Groenlândia, um ar mais antigo do que qualquer criatura viva, liberto aos estouros pelo derretimento global: póque... póque. Me deixem longe do carnaval, pelo menos desta vez. Me deixem ouvir o Carlos Galhardo cantando o alalaô no radinho enquanto lá fora o vento açoita as montanhas vermelhas do Marrocos. Parece que vai nevar.