Colunistas

É socióloga e foi professora da Fundação Getulio Vargas até 2019, de onde saiu para se dedicar integralmente à literatura. Nascida em Varginha (MG), passou sua infância e juventude de São Carlos (SP), formou-se em Ciências Sociais pela UNESP/Araraquara, fez mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo (USP) com bolsa sanduíche no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Foi Pesquisadora Visitante na Universidade de Boston (BU) e fez pós-doutorado na Universidade de Londres (King’s College). Publicou e organizou diversos artigos e livros acadêmicos. A origem da água é seu primeiro livro de ficção. 

É Professora da Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio, Cientista do Estado pela FAPERJ e Bolsista de Produtividade no CNPq. Curadora convidada da Bienal de SP 2021. É escritora, autora dos livros Tiráspola e Desaparecimentos, Editora Garupa, 2016, A punhalada, 7Letras, 2016, Todo Mar, Urutau, 2018; colunista da Revista Literária Pessoa, pesquisadora da obra do escritor francês Antonin Artaud, vem desenvolvendo há muitos anos uma investigação sobre os diversos modos de relação entre os corpos e a escrita. Autora do livro Antonin Artaud, EDUERJ, 2016, e com Gabriel Giorgi, Ódios Políticos e Politica do Ódio, RJ: Bazar do Tempo, 2019 e Las Vueltas del ódio, BA: Eterna Cadência, 2020. Organizadora do livro A Perda de Si – cartas de A. Artaud, Rocco, 2017; e das coletâneas: Sobre o Corpo, 7Letras, 2016, Expansões Contemporâneas: literatura e outras formas, com Florência Garramuno, UFMG, 2014, entre outros artigos e ensaios.  Foi curadora, em 2020, da exposição Corte/Relação dos cadernos de Antonin Artaud e de Édouard Glissant. Para a 34ª Bienal de São Paulo. Em 2021, estreou seu primeiro romance O Canto Dela, pela editora Patuá. Fotografada por Dani Neves.

Chagall, sua aldeia, uma tarde

Não sei como desenhar o menino... pois até o bico de pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele vive.  

 

“Menino a bico de pena”. Clarice Lispector. 

 

Chega, e o convite entra com ela, “Vovó, vamos brincar?”. Esconde-esconde, massinha, jogo da memória, jogo da velha. Nunca pede a televisão ou celular, que nem tenho. Quer brincar

Sempre que posso, evito o esconde-esconde. Pede muita movimentação pela casa, que não é pequena e encerra um bocado de esconderijos possíveis. Mas, quando a energia suporta, vamos lá, pôr-me em portas fechadas na despensa da cozinha, no depósito da área, na oficina do avô, no lavabo do salão, buscar um canto na biblioteca ou sentar no alto da escada em caracol que leva até a sala. Essa última opção costuma ser infalível; ela vem, percorre todo o escritório, olha atrás das portas, procura aqui e ali. Mas deixa de olhar para cima, onde estou sentada e me deixo ver sem artifícios. As risadas da descoberta, que acontece por desistência, são contagiantes.

Dessa vez, negadas essas alternativas, decidiu: “Eu desenho, você desenha”. Corrijo, “não vou desenhar, eu conto história”.

“Você só pensa nisso” – diz, em clara reprovação. Ignoro a reprimenda. Bule de café, um clássico de Luís Camargo, que ocupou a infância da mãe dela, vai sendo folheado, a narrativa se impõe. Ela desenha no quadro branco da casa de bonecas e parece me ignorar. Mas olha para as ilustrações, responde à adivinha.

Tem asa, mas não voa.

Tem bico, mas não bica.

Anda sem ter pé.

O que é?

 

– Bule de café! (Ainda que a resposta estivesse à mostra, marcava ponto para interesse e atenção. Continuemos.)  

Na mão da menina, o pincel segue viagem. A boneca ganha forma, aos pés dela uma linha vira tapete. Como se a leitura não a estivesse interessando, me interrompe, discute seu projeto comigo. Decidiu colocar a torre Eiffel no cenário. Estende a mão, pega do móvel próximo o souvenir, faz dele o modelo, avança nos traços enquanto termino o Bule de café.

Pego outro livro. Conte-me mais, de Yael Frankel, uma autora argentina contemporânea. Um diálogo entre mãe e filha. A menina diz que havia visto um homem nascer de um ovo. A mãe ouve, se espanta e pede: conte-me mais.

– Desse homem nasceu um pássaro.

– Gostaria de conhecê-lo.

 

Perto de mim, na estudada indiferença para com aquilo que leio, a menina continua a desenhar. Mas abre espaço para ver as ilustrações, que continuo mostrando, na clássica forma de ler para crianças os livros ilustrados. E por aí prossigo, leitura para ela, descoberta para mim. Descoberta de segunda leitura, naturalmente. Vou fechar o livro em epifania, precisando de silêncio para assimilar o que dizem texto e imagem nessa narração em poema delicado, no qual os lugares se trocam, a mãe dobrando o corpo até a altura da filha para bem ouvir o que ela diz. Do poderoso lugar da fala, essa outra menina constrói também o mundo, igualmente sem restrições. Próximo ao final, diz ser filha de uma maçã. A mãe expõe sua dúvida.

– Mas então... se a sua mamãe é uma maçã, quem sou eu?

 

A definição vem, imediata e tranquila:

 

– Você é quem me deixa sonhar.

 

Peço desculpas pelo spoiler. Sem ele não poderia prosseguir.

Então, apesar da infância carregada de sustos, da juventude atormentada por um controle tirânico, do sexo como pesadelo mor, da vida adulta acompanhada em grande parte pela sombra de uma dívida impagável, então, apesar de tudo isso, minha mãe me permitiu sonhar?! Pois se me deu fantasias, vestimentas materiais que bordava varando as noites antes do Carnaval, dos meus aniversários, da festa da Primeira Comunhão; se me deu as peles intangíveis concedidas pelo estudo e pela leitura e me apresentou o viver feminino, embrulhado no celofane do sacrifício e da perda pessoal?!

Dessas peles, tomei as que me convinham. Ela tomou também para si muito do que alcancei, ao mesmo tempo em que se debatia dentro da pele alheia, pelo que desnudava da própria condição. Passando em revista as fantasias dela, encontrei o belo vaso Murano que herdei, as cerâmicas do Passuelo, os 30 vidros de perfume sobre a penteadeira, as coleções encadernadas de Machado de Assis e de Humberto de Campos. Acatei o desejo da casa própria e as obras contínuas para sua reinvenção. Abracei com braços e pernas o pai bondoso e justo que ela me deu, fiz a vida com os livros que me trouxe da Briguiet & Cia, onde trabalhou como funcionária. Não abriguei a nostalgia do noivo da família marceneira espanhola, deixado para trás em desistência lúcida e corajosa. Não precisei alimentar o sonho de um título universitário e recusei o trauma irreparável, pedregulho no meio do caminho, e deixei-o resumido a isso – ficar no meio do caminho, passível de ser contornado.

O livro no colo, volto para a conversa sobre a boneca e seus passeios em Paris. Em tarde de sol ardente, Chagall, sua aldeia, flutuam em uma casa de bonecas.

 

 

 

É escritor e professor da pós-graduação da Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Em 2018, publicou o livro de contos Na outra margem, o Leviatã (Lote 42) e em 2017 o livro teórico Narrativas e espaços ficcionais: uma introdução (Editora Mackenzie).

Funcionário público federal, é mestre em literatura brasileira e doutor em teoria da literatura pela UFMG, universidade em que atua como jornalista. Publicou a novela A Grande Marcha (editoras Circuito e e-galáxia, 2014 e 2015) e o infantojuvenil Ficções do minidicionário ou A Guerra Secreta dos Insetos (editora Urutau, 2022). Nasceu em 1981 em Belo Horizonte, Minas Gerais, no Brasil, onde vive. (Foto: Foca Lisboa.)

É jornalista e escritora, tem dois filhos e mora em Roma.

Natan Schäfer (Ibirama, 1991) é mestre em estudos literários pela Universidade Federal do Paraná e pela Université Lumière Lyon 2. Foi professor do curso de Bacharelado em Artes Visuais da UNESPAR e tradutor convidado nas residências Looren América Latina (Suíça) e Résidence Passa Porta (Bélgica). É autor de Taquaras (Contravento Editorial, 2022) e tradutor de, dentre outros, Por uma insubmissão poética (Sobinfluência, 2022) e La promenade de Vénus (Venus D'Ailleurs, 2022). Atualmente é membro da Psychoanalytische Bibliothek Berlin e responsável pela Contravento Editorial, também assinando a coluna "A Fresta" na página da editora Sobinfluência. Além disso, dá a ver em desenhos, pinturas, escritos e fotografias algo da poesia que lhe atravessa.

Nasceu no Rio de Janeiro, onde vive. Autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio, Estrela de rabo e mais histórias, Iberê Camargo: um homem valente, é também tradutora e escreve ensaios e artigos científicos. Recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio, o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil, além das distinções White Ravens, da Biblioteca Internacional de Munich para a Juventude  e Lista de Honra do International Books for Young People. Professora aposentada da Universidade Federal Fluminense, mantém na Revista Pessoa a Coluna Ladrilhos, com crônicas de talhe variado, em perspectiva lusófona.

“Maravilhosa composição de carne e nervos”

Para M.

“Eu só sei escrever escrevendo.” 

                Foi o argumento dela à minha sugestão de que se valesse de tecnologias contemporâneas para suprir os limites que o corpo vem impondo ao gesto que a caracteriza – escrever. Não apenas isso, pois ela é múltipla e maneja também pincéis e instrumentos de gravura. Cozinha, como se não bastasse. E bem. Creio que já não faça agora algumas dessas coisas, não com a desenvoltura de outrora. O corpo, a mão em especial, sente as marcas da proximidade de terra estrangeira, tão íntima, e tão ladra. 

                “Só sei escrever escrevendo.” A impossibilidade me apertou o peito. Escrever e ler são gestos do corpo. Valer-se de tecnologias para estender o seu alcance ou suprir as falhas que apresenta – bengala, muletas, óculos, próteses diversas – é uso de longa data. O avanço acelerado da informática tem corporificado a extensão de funções físicas e mentais para bem além do que propiciara o primitivo gancho de metal de certo pirata imaginário, desafiado pela eterna e onipotente infância de Peter Pan.

A impossibilidade aconchegada no peito. Ao ficar cego, Borges contratou um leitor, a quem fornecia indicações precisas sobre a localização do livro a ser lido, e nele o capítulo, o parágrafo, a linha, talvez. Uma escritora cuja mão sucumbe aos desarranjos neurológicos pode se valer no presente, e dentre outros recursos, de programas de computação que captam a voz e a transcrevem em texto legível.  

“Não. Só sei escrever escrevendo, já disse.” Apontava os lápis, o odor da madeira nas narinas, o grafite largando sulcos na mão, no papel. O papel. Nada de compará-lo ao corpo do amante, papel é vida amassada, pasta vegetal que se alisa à custa de química e trabalho humano. Se a borracha apaga os erros dos homens, como escreveu uma jovem em certo exemplo muito bem-sucedido de redação escolar, o papel é a própria embalagem do humano. Ainda que a substituição por outros produtos mais baratos se apresente com frequência no horizonte, o papel continua como envoltório do que, no humano, é sublime ou mesquinho.

Envoltório volátil, a tela luminosa pode ser a que primeiro recebe o que nos aflige ou alegra. Contudo, apesar dos alternativos ensaios ecológicos, é o papel o almejado destino final. Tem mais, o ato de escrever à mão. Depois dos gestos iniciais de escolha e preparo do material, o tato entra em cena. O lápis contra o dedo calejado, a mão enrugando o papel, o desenho de cada letra, a palavra como fôrma única para a expressão, a linha escrita varando o escuro. E os tiques pessoais. Algumas pessoas murmuram enquanto escrevem, num recitar do texto posto na página. Outras apoiam longamente a mão, ora uma, ora outra, no queixo ou no ouvido, outros ainda as movem nervosamente, buscando a próxima frase. Ou as deixam a abanar-se, porque isso de escrever não é como se quer, é como se pode.  

Ato em que o corpo se implica de forma integral, não é com a ponta dos dedos nem com voz transformada em sinais gráficos que se escreve. Pode-se escrever com os pés, como em alguns admiráveis relatos de superação de uma deficiência física. Como se não fôssemos deficientes todos, no pecado original da espécie. Incompletos, demonstramos nossas inerentes e permanentes falhas produzindo a linguagem, a dança, o desenho, a arquitetura, a música. Na escrita, menos importará a superfície que a renda sobre ela, uma ferida, em verdade. Escrever golpeia, em sua natureza de deixar marcada a ideia feita linguagem. Arranha, gasta, desbasta. Solta faíscas, o ato de escrever. No atrito do gesto contra a superfície, libera-se uma carga elétrica, sinal de alma que busca e encontra seu corpo. Que escritora nunca sentiu um choque, longínquo que seja, ao escrever?

Não me levem a mal, esta apologia, apologia?, melancolia?, à escrita feita à mão, não se põe de forma contrária às tecnologias recentes. Também estou em frente, não da folha, mas da tela, costurando retalhos de papel deixados pela casa conforme a urgência da escrita, e recolhidos mais tarde, ganchos para bem puxar a meada da escrita, ela própria uma tecnologia de ponta. Os fenícios sabiam disso e, comerciantes (o bom comerciante é um democrata por natureza), partilharam o banquete. Ou o conhecimento. Ou a nostalgia do que não se terá, mas poderá ser alcançado por um texto escrito.

A fisiologia humana concedeu à mão um lugar essencial no laborioso e milenar processo de escrever. A mão em sua inteireza, tal como revela parte de uma conversa em antiga noite de festa.

“Ah, somos uma raça ingrata! Quando olho para minha mão no peitoril da janela e penso no prazer que ela já me deu, como tocou em seda e cerâmica, em paredes quentes, como se espalmou na grama úmida ou banhada de sol, deixou o Atlântico esguichar por seus dedos, apoderou-se de jacintos e narcisos, colheu ameixas maduras, nunca por um segundo desde que eu nasci deixou de me falar de quente e frio, molhado ou seco, espanta-me que eu use esta maravilhosa composição de carne e nervos para escrever invectivas à vida. No entanto, é isso o que fazemos. Pense bem a esse respeito, a literatura é o registro do nosso descontentamento.”

Discordarei de Virginia. Nem sempre é assim. A literatura não se faz de contentamento, é certo. Mas muito descontentamento caminha para seu contrário quando a mão decide escrever. Cansada, ou impossibilitada de seguir em sua tarefa, a escritora, todavia, não se calará. Escreverá então a leitora, tomando o que a mão da autora oferece de já escrito, para visitá-lo outra vez, usando não a roupa das primeiras leituras, mas outra, bem mais encorpada, indelével o tecido, invisíveis as cerziduras. 

*Virginia Woolf. Noite de festa. In: ___. Contos completos. Trad. Leonardo Fróes. São Paulo: Cosac & Naify, 2005. p. 129.

“Maravilhosa composição de carne e nervos”

Para M.

“Eu só sei escrever escrevendo.” 

                Foi o argumento dela à minha sugestão de que se valesse de tecnologias contemporâneas para suprir os limites que o corpo vem impondo ao gesto que a caracteriza – escrever. Não apenas isso, pois ela é múltipla e maneja também pincéis e instrumentos de gravura. Cozinha, como se não bastasse. E bem. Creio que já não faça agora algumas dessas coisas, não com a desenvoltura de outrora. O corpo, a mão em especial, sente as marcas da proximidade de terra estrangeira, tão íntima, e tão ladra. 

                “Só sei escrever escrevendo.” A impossibilidade me apertou o peito. Escrever e ler são gestos do corpo. Valer-se de tecnologias para estender o seu alcance ou suprir as falhas que apresenta – bengala, muletas, óculos, próteses diversas – é uso de longa data. O avanço acelerado da informática tem corporificado a extensão de funções físicas e mentais para bem além do que propiciara o primitivo gancho de metal de certo pirata imaginário, desafiado pela eterna e onipotente infância de Peter Pan.

A impossibilidade aconchegada no peito. Ao ficar cego, Borges contratou um leitor, a quem fornecia indicações precisas sobre a localização do livro a ser lido, e nele o capítulo, o parágrafo, a linha, talvez. Uma escritora cuja mão sucumbe aos desarranjos neurológicos pode se valer no presente, e dentre outros recursos, de programas de computação que captam a voz e a transcrevem em texto legível.  

“Não. Só sei escrever escrevendo, já disse.” Apontava os lápis, o odor da madeira nas narinas, o grafite largando sulcos na mão, no papel. O papel. Nada de compará-lo ao corpo do amante, papel é vida amassada, pasta vegetal que se alisa à custa de química e trabalho humano. Se a borracha apaga os erros dos homens, como escreveu uma jovem em certo exemplo muito bem-sucedido de redação escolar, o papel é a própria embalagem do humano. Ainda que a substituição por outros produtos mais baratos se apresente com frequência no horizonte, o papel continua como envoltório do que, no humano, é sublime ou mesquinho.

Envoltório volátil, a tela luminosa pode ser a que primeiro recebe o que nos aflige ou alegra. Contudo, apesar dos alternativos ensaios ecológicos, é o papel o almejado destino final. Tem mais, o ato de escrever à mão. Depois dos gestos iniciais de escolha e preparo do material, o tato entra em cena. O lápis contra o dedo calejado, a mão enrugando o papel, o desenho de cada letra, a palavra como fôrma única para a expressão, a linha escrita varando o escuro. E os tiques pessoais. Algumas pessoas murmuram enquanto escrevem, num recitar do texto posto na página. Outras apoiam longamente a mão, ora uma, ora outra, no queixo ou no ouvido, outros ainda as movem nervosamente, buscando a próxima frase. Ou as deixam a abanar-se, porque isso de escrever não é como se quer, é como se pode.  

Ato em que o corpo se implica de forma integral, não é com a ponta dos dedos nem com voz transformada em sinais gráficos que se escreve. Pode-se escrever com os pés, como em alguns admiráveis relatos de superação de uma deficiência física. Como se não fôssemos deficientes todos, no pecado original da espécie. Incompletos, demonstramos nossas inerentes e permanentes falhas produzindo a linguagem, a dança, o desenho, a arquitetura, a música. Na escrita, menos importará a superfície que a renda sobre ela, uma ferida, em verdade. Escrever golpeia, em sua natureza de deixar marcada a ideia feita linguagem. Arranha, gasta, desbasta. Solta faíscas, o ato de escrever. No atrito do gesto contra a superfície, libera-se uma carga elétrica, sinal de alma que busca e encontra seu corpo. Que escritora nunca sentiu um choque, longínquo que seja, ao escrever?

Não me levem a mal, esta apologia, apologia?, melancolia?, à escrita feita à mão, não se põe de forma contrária às tecnologias recentes. Também estou em frente, não da folha, mas da tela, costurando retalhos de papel deixados pela casa conforme a urgência da escrita, e recolhidos mais tarde, ganchos para bem puxar a meada da escrita, ela própria uma tecnologia de ponta. Os fenícios sabiam disso e, comerciantes (o bom comerciante é um democrata por natureza), partilharam o banquete. Ou o conhecimento. Ou a nostalgia do que não se terá, mas poderá ser alcançado por um texto escrito.

A fisiologia humana concedeu à mão um lugar essencial no laborioso e milenar processo de escrever. A mão em sua inteireza, tal como revela parte de uma conversa em antiga noite de festa.

“Ah, somos uma raça ingrata! Quando olho para minha mão no peitoril da janela e penso no prazer que ela já me deu, como tocou em seda e cerâmica, em paredes quentes, como se espalmou na grama úmida ou banhada de sol, deixou o Atlântico esguichar por seus dedos, apoderou-se de jacintos e narcisos, colheu ameixas maduras, nunca por um segundo desde que eu nasci deixou de me falar de quente e frio, molhado ou seco, espanta-me que eu use esta maravilhosa composição de carne e nervos para escrever invectivas à vida. No entanto, é isso o que fazemos. Pense bem a esse respeito, a literatura é o registro do nosso descontentamento.”

Discordarei de Virginia. Nem sempre é assim. A literatura não se faz de contentamento, é certo. Mas muito descontentamento caminha para seu contrário quando a mão decide escrever. Cansada, ou impossibilitada de seguir em sua tarefa, a escritora, todavia, não se calará. Escreverá então a leitora, tomando o que a mão da autora oferece de já escrito, para visitá-lo outra vez, usando não a roupa das primeiras leituras, mas outra, bem mais encorpada, indelével o tecido, invisíveis as cerziduras. 

*Virginia Woolf. Noite de festa. In: ___. Contos completos. Trad. Leonardo Fróes. São Paulo: Cosac & Naify, 2005. p. 129.

Poeta, desenhista, arquiteto e diplomata, nasceu no Rio de Janeiro em 1933. Atualmente vive na Alemanha.

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