“Maravilhosa composição de carne e nervos”
Para M.
“Eu só sei escrever escrevendo.”
Foi o argumento dela à minha sugestão de que se valesse de tecnologias contemporâneas para suprir os limites que o corpo vem impondo ao gesto que a caracteriza – escrever. Não apenas isso, pois ela é múltipla e maneja também pincéis e instrumentos de gravura. Cozinha, como se não bastasse. E bem. Creio que já não faça agora algumas dessas coisas, não com a desenvoltura de outrora. O corpo, a mão em especial, sente as marcas da proximidade de terra estrangeira, tão íntima, e tão ladra.
“Só sei escrever escrevendo.” A impossibilidade me apertou o peito. Escrever e ler são gestos do corpo. Valer-se de tecnologias para estender o seu alcance ou suprir as falhas que apresenta – bengala, muletas, óculos, próteses diversas – é uso de longa data. O avanço acelerado da informática tem corporificado a extensão de funções físicas e mentais para bem além do que propiciara o primitivo gancho de metal de certo pirata imaginário, desafiado pela eterna e onipotente infância de Peter Pan.
A impossibilidade aconchegada no peito. Ao ficar cego, Borges contratou um leitor, a quem fornecia indicações precisas sobre a localização do livro a ser lido, e nele o capítulo, o parágrafo, a linha, talvez. Uma escritora cuja mão sucumbe aos desarranjos neurológicos pode se valer no presente, e dentre outros recursos, de programas de computação que captam a voz e a transcrevem em texto legível.
“Não. Só sei escrever escrevendo, já disse.” Apontava os lápis, o odor da madeira nas narinas, o grafite largando sulcos na mão, no papel. O papel. Nada de compará-lo ao corpo do amante, papel é vida amassada, pasta vegetal que se alisa à custa de química e trabalho humano. Se a borracha apaga os erros dos homens, como escreveu uma jovem em certo exemplo muito bem-sucedido de redação escolar, o papel é a própria embalagem do humano. Ainda que a substituição por outros produtos mais baratos se apresente com frequência no horizonte, o papel continua como envoltório do que, no humano, é sublime ou mesquinho.
Envoltório volátil, a tela luminosa pode ser a que primeiro recebe o que nos aflige ou alegra. Contudo, apesar dos alternativos ensaios ecológicos, é o papel o almejado destino final. Tem mais, o ato de escrever à mão. Depois dos gestos iniciais de escolha e preparo do material, o tato entra em cena. O lápis contra o dedo calejado, a mão enrugando o papel, o desenho de cada letra, a palavra como fôrma única para a expressão, a linha escrita varando o escuro. E os tiques pessoais. Algumas pessoas murmuram enquanto escrevem, num recitar do texto posto na página. Outras apoiam longamente a mão, ora uma, ora outra, no queixo ou no ouvido, outros ainda as movem nervosamente, buscando a próxima frase. Ou as deixam a abanar-se, porque isso de escrever não é como se quer, é como se pode.
Ato em que o corpo se implica de forma integral, não é com a ponta dos dedos nem com voz transformada em sinais gráficos que se escreve. Pode-se escrever com os pés, como em alguns admiráveis relatos de superação de uma deficiência física. Como se não fôssemos deficientes todos, no pecado original da espécie. Incompletos, demonstramos nossas inerentes e permanentes falhas produzindo a linguagem, a dança, o desenho, a arquitetura, a música. Na escrita, menos importará a superfície que a renda sobre ela, uma ferida, em verdade. Escrever golpeia, em sua natureza de deixar marcada a ideia feita linguagem. Arranha, gasta, desbasta. Solta faíscas, o ato de escrever. No atrito do gesto contra a superfície, libera-se uma carga elétrica, sinal de alma que busca e encontra seu corpo. Que escritora nunca sentiu um choque, longínquo que seja, ao escrever?
Não me levem a mal, esta apologia, apologia?, melancolia?, à escrita feita à mão, não se põe de forma contrária às tecnologias recentes. Também estou em frente, não da folha, mas da tela, costurando retalhos de papel deixados pela casa conforme a urgência da escrita, e recolhidos mais tarde, ganchos para bem puxar a meada da escrita, ela própria uma tecnologia de ponta. Os fenícios sabiam disso e, comerciantes (o bom comerciante é um democrata por natureza), partilharam o banquete. Ou o conhecimento. Ou a nostalgia do que não se terá, mas poderá ser alcançado por um texto escrito.
A fisiologia humana concedeu à mão um lugar essencial no laborioso e milenar processo de escrever. A mão em sua inteireza, tal como revela parte de uma conversa em antiga noite de festa.
“Ah, somos uma raça ingrata! Quando olho para minha mão no peitoril da janela e penso no prazer que ela já me deu, como tocou em seda e cerâmica, em paredes quentes, como se espalmou na grama úmida ou banhada de sol, deixou o Atlântico esguichar por seus dedos, apoderou-se de jacintos e narcisos, colheu ameixas maduras, nunca por um segundo desde que eu nasci deixou de me falar de quente e frio, molhado ou seco, espanta-me que eu use esta maravilhosa composição de carne e nervos para escrever invectivas à vida. No entanto, é isso o que fazemos. Pense bem a esse respeito, a literatura é o registro do nosso descontentamento.”
Discordarei de Virginia. Nem sempre é assim. A literatura não se faz de contentamento, é certo. Mas muito descontentamento caminha para seu contrário quando a mão decide escrever. Cansada, ou impossibilitada de seguir em sua tarefa, a escritora, todavia, não se calará. Escreverá então a leitora, tomando o que a mão da autora oferece de já escrito, para visitá-lo outra vez, usando não a roupa das primeiras leituras, mas outra, bem mais encorpada, indelével o tecido, invisíveis as cerziduras.
*Virginia Woolf. Noite de festa. In: ___. Contos completos. Trad. Leonardo Fróes. São Paulo: Cosac & Naify, 2005. p. 129.